Vários equívocos no filme Papa Francisco: Conquistando Corações
Diferentemente de outras religiões, como o judaísmo e islamismo, o cristianismo não fala sobre uma ordem social terrestre ou alguma espécie de regozijo coletivo. Mais do que para multidões, a religião de Cristo dialoga com cada alma individualmente, oferecendo para cada sujeito em particular as chaves necessárias para entrar na casa de Deus.
Infelizmente, nos dias de hoje, essa noção se perdeu. Em tempos como o nosso, nos quais a espiritualidade abandonou a vida pública, se restringindo apenas à doméstica, as pessoas buscam personagens que sejam mártires das causas políticas e sociais. No falacioso e repetitivo discurso de progresso, a alma se transformou numa relíquia, abandonada nos dispensários da sociedade humana.
O filme Papa Francisco: Conquistando Corações (Francisco – El Padre Jorge), para a surpresa de muitas pessoas (este crítico não esperava um resultado em nada diferente), é um filme que reafirma essa falta de sensibilidade moderna, indo na contramão de quase tudo que é fundamental na Igreja Católica.
Revelando ao público as paixões da juventude do seminarista Jorge Mario Begoglio, a sua vida como padre em uma paróquia de Buenos Aires, o papel exercido durante a ditadura argentina e, por fim, o momento em que se tornou o pontífice, o filme enxerga uma santidade no seu protagonista que o faz se aproximar mais de revolucionários políticos modernos que de São Francisco de Assis, um dos seus principais ídolos.
No entanto, apesar de trair constantemente o espírito daquilo que busca retratar, o filme poderia se sobressair nos aspectos técnico e narrativo. E garanto ao leitor que mesmo não concordando com a visão ou mensagem contida em um filme em particular, nunca deixo os meus ideais interferirem. Essa é uma posição que faço questão de manter.
Porém, em Papa Francisco: Conquistando Corações, não tive de articular em nenhum momento essa posição crítica, já que o filme não consegue se destacar em nada, com a exceção da ótima atuação de Darío Grandinetti (que esteve recentemente em Julieta), que, ainda assim, não consegue salvar o projeto do desastre completo.
Nos apresentando inicialmente à Ana, a jornalista interpretada pela atriz Silvia Abascal (não há nenhum motivo real para a presença dessa personagem na história), passeando de ônibus pelos locais importantes na formação intelectual e profissional do Papa Francisco, os realizadores do filme investem numa estrutura totalmente equivocada.
Alternando entre longos flashbacks que mostram o passado do Padre Begoglio e cenas que acompanham os dias atuais na vida de Ana, a montagem de Cristina Pastor e o roteiro de Beda Docampo Feijóo e César Gómez Copello (adaptado do livro de Elisabetta Pique) falham em criar uma narrativa que se justifique. As memórias são pobremente incluídas na história, não existindo uma correlação rica entre os acontecimentos atuais e o conteúdo específico das lembranças.
Um outro elemento que também chama atenção negativamente é o descuido com o desenvolvimento de alguns dos conflitos presentes na narrativa. Se, logo no início, a tensão entre o desejo da mãe para que Jorge se tornasse um médico e a opção do filho por se transformar num padre impressiona pela velocidade com a qual é tratada e posteriormente abandonada, esse mesmo descuido retornará em outros momentos da projeção.
Por exemplo: a história envolvendo a paixão juvenil de Jorge por um garota na época em que ele já era um seminarista. Imagina-se que, na cabeça de um garoto que está prestes a abraçar o celibato, a atração por garotas gere uma dúvida genuína sobre qual é o destino que deseja seguir. No entanto, como se isso fosse um conflito banal, ele é simplesmente esquecido, sem que haja uma menção sequer no desenrolar do filme.
A mesma coisa acontece com a participação de Bergoglio na ditadura argentina. Se restringindo apenas à algumas cenas dispersas que revelam o seu auxílio à pessoas perseguidas politicamente, esses momentos revelam passagens nas quais o padre teve de mentir descaradamente para conseguir manter os segredos que compartilhava. Porém, assim como nos acontecimentos supracitados, toda a convulsão interna que poderia ser trabalhada a partir do uso da mentira para um bem maior é totalmente ignorado, resultando numa obra que evita a problematização das discussões que tenta propor.
A perfeição superficial
Toda essa indiferença às imperfeições cria a aparência de um retrato impecável, como se o Papa Francisco não tivesse cometido um único pecado na sua vida. No entanto, isso não se deve à possível retidão moral de Jorge Begoglio, mas sim à covardia dos responsáveis na hora de realizar uma obra biográfica fiel e verdadeira.
Claramente propagandístico, o filme, além de reforçar desnecessariamente algumas de suas mensagens (o protagonista repete exaustivamente certos discursos), comete o absurdo de não exibir as falhas de Jorge, optando por apenas mencionar que ele realizou algumas, como se o julgamento das ações dos personagens devesse ser feito exclusivamente pelos realizadores e não pelo público.
Aliás, é irritante perceber que, no afã de reiterar essa perfeição superficial, o filme Papa Francisco: Conquistando Corações transforme cada diálogo do protagonista com outro personagem em um momento de edificação vazia e discurso de auto ajuda (a fotografia quase sempre ensolarada de Kiko De La Rica reafirma essa proposta edificadora do filme).
Aparentemente incapaz de proferir uma fala como um ser humano normal, o Papa Francisco visto no filme se aproveita de qualquer conversa para exibir o seu conhecimento e despejar a sua modéstia, como se fosse um robô programado agir dessa maneira.
Assim, infelizmente, fica a incômoda sensação ao final da projeção de que saímos da sessão tão ignorantes do assunto quanto no momento em que começamos a assistir ao filme. Superficial e pobremente informativo, o retrato proposto pela cinebiografia de Beda Docampo Feijóo não quer nos oferecer a nudez intelectual, emocional e moral de um homem.
A sua intenção é outra: deseja elevar o Papa Francisco ao nível de um santo. No entanto, pelo que eu saiba, a canonização não é uma responsabilidade do Cinema, mas sim da Igreja Católica. Mesmo nos tempos viciosos em que vivemos, não acredito que isso tenha mudado.
No que parece ser uma nova onda de longas a abordarem questões espirituais e religiosas, recomendo ao espectador que, depois de assistir a este filme, veja obras recentes como Até O Último Homem e Jackie e compare o nível de espiritualidade entre eles. Aposto que nos retratos propostos por Mel Gibson e Pablo Larraín a fé cristã está muito mais bem representada que nesta obra deplorável de Beda Docampo Feijóo.