O filme Fragmentado é um dos melhores de M. Night Shyamalan
M. Night Shyamalan (que já foi tema de um podcast nosso) é um caso curioso. Depois de chamar atenção do mundo inteiro com as obras-primas O Sexto Sentido e Corpo Fechado, para muitas pessoas, o diretor, a partir de Sinais, passou a trilhar um caminho cada vez mais descendente que culminou na realização de Depois Da Terra, claramente feito sob encomenda. Isso fez com que muitas pessoas duvidassem do seu talento. Foi só depois de A Visita, e agora com este Fragmentado (Split), que os críticos passaram a considerar a possibilidade de um renascimento artístico do cineasta.
No entanto, as coisas nunca foram assim para este crítico que vos escreve. Embora eu também considere a carreira de Shyamalan irregular, tenho orgulho em afirmar que a sua capacidade como roteirista e diretor nunca ficou em xeque para mim. Mesmo nos seus momentos mais vulneráveis, como em A Dama Na Água e O Último Mestre do Ar, continuei a ver honestidade e qualidade no seu trabalho. Sendo assim, o que para muitas pessoas foi um renascimento das cinzas do cineasta, para mim, o filme Fragmentado apenas confirmou aquilo que sempre soube: M. Night Shyamalan é um talento único, uma voz original e deliciosamente exótica num cenário tomado pela normalidade doentia.
Mas como este texto não é sobre Shyamalan, mas sobre o seu último filme, paremos com as introduções e vamos logo à obra. Roteirizado, como sempre, pelo diretor, Fragmentado conta a história de três garotas sequestradas por Kevin (James McAvoy, que esteve recentemente em X-Men: Apocalipse), um sujeito diagnosticado com TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade), o que faz com que vivam nele 23 personalidades diferentes. Presas dentro de um quarto, as três garotas, enquanto buscam maneiras de escapar, terão de enfrentar algumas das manifestações de Kevin (o filme nos mostra apenas 9 das 23) e a promessa do advento de uma vigésima quarta, chamada simplesmente de a Fera.
Como em todos os grandes filmes, Fragmentado já começa com uma cena em que cada uma das escolhas visuais do diretor surte um efeito de antecipação no público. Iniciando com um eficiente uso de dolly zoom que, além de deixar claro para o espectador que Casey Cooke (Anya Taylor-Joy), a protagonista, está alienada do seu meio, também foca o olhar compenetrado que a personagem direciona a algo que nunca é mostrado, o momento segue para um plano geral que posteriormente se revela ser uma subjetiva de Kevin, enquanto ele caminha em direção ao pai de uma da garotas sequestradas para abatê-lo. No instante seguinte, o diretor usa três movimentos de câmera idênticos para alternar entre Cooke e as outras duas personagens femininas e criar um suspense inquietante. A cena termina com uma intensa e doentia troca de olhar entre Kevin e a protagonista (iniciando uma ligação entre os dois que será importante para o restante da narrativa).
Não se restringindo apenas à cena inicial, a destreza de Shyamalan como diretor também se mostrará presente na maneira com que ele trabalha a mise-en-scène. Percebam, por exemplo, como as diferenças de personalidade que afastam Cooke das outras duas garotas são refletidas através de uma separação corporal: em um plano geral onde um cano simboliza uma barreira entre elas, a protagonista está sentada em uma cama, enquanto as outras estão sentadas juntas em outra.
Preocupado também com outros componentes que possam auxiliar na construção temática e atmosférica da jornada dos seus personagens, Shyamalan, ao lado do desconhecido, mas talentoso, diretor de fotografia Mike Gioulakis, filma os quartos fechados e os corredores tortuosos como se fossem uma extensão da mente de Kevin, transformando os inúmeros encanamentos e fiações num símbolo poderoso das ramificações e desvios do cérebro do personagem.
Um elemento que também merece ser destacado é a trilha sonora composta por West Dylan Thordson, que, nas mãos de Shyamalan, do montador Luke Ciarrocchi e da equipe de som, funciona como uma aula sobre o uso de música incidental na criação de suspense e drama: vejam (e ouçam!) como a mixagem baixa da trilha, mas ressaltada nos momentos exatos, são extremamente eficientes na hora de gerar no espectador um sentimento de terror ou uma empatia emocional com a tristeza que habita naqueles personagens.
O roteiro de M. Night Shyamalan e James McAvoy
Aliás, essa alternância sempre bem sucedida entre o suspense e o drama (uma das características mais marcantes dos filmes de Shyamalan) é trabalhada perfeitamente em Fragmentado. O cineasta/roteirista sabe que para temermos o futuro dos personagens é preciso que nos importemos com eles. Para isso, há a necessidade de que sejam, como todos os seres humanos, complexos e tridimensionais. Felizmente, se há algo que não podemos afirmar é que os personagens do seu último filme são rasos e superficiais. Já logo no início, um dos primeiros elementos que mais chamam atenção é a maneira com que Claire e Marcia reagem ao sequestro. Ao contrário do que é comumente visto nos filmes de suspense, as duas nunca agem como vítimas. Embora estejam, obviamente, assustadas, elas buscam formas de escapar o tempo todo.
No entanto, como não poderia deixar de ser, é na construção de Kevin e Cooke e na estranha ligação estabelecida entre os dois que o texto de Shyamalan realmente se sobressai. Compartilhando traumas de infância parecidos, eles são desenvolvidos pelo roteiro como a caça e o caçador (aliás, os flashbacks introduzidos sempre nos momentos certos da narrativa servem tanto para revelar o que aconteceu com a protagonista nos seus dias de criança quanto para mostrar que as sessões de caça que ela fazia ao lado do pai foram essenciais para ela agir tão fria e pacientemente durante os dias em que está em cativeiro).
Mas é interessante ver como, às vezes, eles trocam de papel. Em certos momentos, é Kevin que está no controle, já em outros, é Cooke que se aproveita das personalidades mais vulneráveis dele para manipulá-lo. Além disso, é surpreendentemente comovente ver como os dois compartilham a situação de ostracizados. Enquanto as falas de Kevin revelam que algumas das personalidades manifestadas foram marginalizadas por terem características que as outras consideram indesejadas, Cooke é quieta, meticulosa e com trejeitos que as “amigas” acham ser inconvenientes. Porém, assim como no caso de Kevin, os responsáveis por esses desvios comportamentais são eventos do passado que nos mostram que monstros existem, sim (o que estabelece uma rima riquíssima com os desdobramentos da narrativa), fechando o filme de uma maneira impecável.
Porém, para que os personagens e essa dinâmica entre eles funcionasse, era preciso que os atores encarregados de trazê-los à vida fossem tão intensos quanto os personagens. Para a felicidade de Shyamalan e do público em geral, Anya Taylor-Joy e, principalmente, James McAvoy, entenderam perfeitamente os seus respectivos papéis. Ao passo que jovem a atriz explora com eficiência a expressividade dos seus olhos e a vulnerabilidade do seu corpo ainda adolescente, o talentoso ator britânico entrega uma performance hercúlea.
Interpretando um personagem cujas extravagâncias, nas mãos de uma pessoa menos talentosa, poderiam parecer caricatas e involuntariamente hilárias, McAvoy, em uma composição cuidadosa e muito bem pensada, encarna o personagem com uma intensidade e verossimilhança raramente vistas nos últimos anos. Cada um dos gestos são assustadores e dramáticos. E o fato de que Shyamalan, percebendo que tem à sua frente uma performance memorável, usa close-ups e planos americanos para captar cada instante, só enriquece a interpretação do ator.
Tenso, comovente e com uma cena pós-crédito que fará os fãs de Corpo Fechado vibrarem, o filme Fragmentado é totalmente original (concebido, roteirizado e dirigido pelo cineasta) e diferente de tudo a que o espectador está acostumado. Além disso, serve para comprovar algo de que nunca duvidei: o talento de M. Night Shyamalan jamais desapareceu. Portanto, nada de “bem-vindo de volta” ou “enfim, ele voltou a fazer bons filmes”.
A única frase aceitável que podemos usar é “obrigado por ter continuado sempre na ativa”. Afinal de contas, num cenário tomado por continuações, adaptações e remakes, ter à disposição um cineasta interessado em contar as próprias histórias e com uma visão particularíssima da experiência humana é um luxo do qual não podemos abrir mão de maneira alguma. Obrigado, Shyamalan! Nós precisamos muito de você!