Além Da Ilusão não tem foco narrativo
O filme Além Da Ilusão (Planetarium), novo da diretora Rebecca Zlotowski (e que também foi uma das roteiristas do recente Apesar Da Noite), ao longo de sua projeção, sofre pela falta de foco. Vários assuntos de naturezas distintas surgem na tela, porém nenhum deles é aprofundado e nem consegue se destacar a ponto de se tornar a principal intenção narrativa do projeto. No final, o que resta é um gosto ruim na boca em razão de termos acompanhado uma história com inúmeras ramificações, mas que, na gana de abraçar todas elas, terminou por resultar numa miscelânea quase indecifrável de temas.
Roteirizado pela própria diretora e por Robin Campillo, o filme conta a história das irmãs Laura (Natalie Portman, que concorreu recentemente ao Oscar por sua interpretação em Jackie) e Kate Barlow (Lily-Rose Depp, filha do ator Johnny Depp). Se aproveitando do dom espiritual da segunda, elas trabalham como médiuns em plena Europa do período entreguerras. Em uma de suas apresentações, chamam atenção do magnata da indústria cinematográfica francesa André Korben (Emanuell Salinger), que, impressionado com o talento de Kate, as convida para ir morar na sua casa. Depois de aceitarem o convite, as suas vidas mudam completamente.
Lendo a descrição do enredo, o leitor talvez tenha a impressão de que o tema central ou o núcleo narrativo são bem definidos e os outros assuntos que vão surgindo são periféricos. Ledo engano. Embora não seja difícil de ser acompanhada, a história que foi descrita serve somente como uma proposta inicial. A partir do momento em que as duas irmãs começam a morar na casa de André, o filme passa a abordar uma série quase que infindável de assuntos, tudo de uma forma superficial e que nunca fica muito clara, fazendo o espectador sair da sala com uma indefinição sobre aquilo que acabou de assistir.
Se, no início, depois de cenas em que vemos as irmãs conversando sobre a saudade que sentem de casa, imaginamos que o filme girará em torno delas e do sentimento de estranheza proveniente da situação de estrangeiras na qual se encontram, após descobrirmos que trabalham como médiuns, passamos a considerar a possibilidade de que, na verdade, a narrativa se desdobrará sobre questões acerca do sobrenatural e da possível existência de planos espirituais. Mas, quando Laura e Kate se mudam para a casa de André e a primeira começa a trabalhar como atriz de Cinema, chegando até mesmo a gozar de um certo sucesso, o roteiro parece querer discutir sobre a capacidade que a técnica cinematográfica tem de manipular e iludir o espectador.
Essa salada de temas só piora no momento em que as sessões mediúnicas particulares de André revelam uma ligação misteriosa do personagem com um sujeito fardado misterioso, indicando que Zlotowski talvez esteja desejando fazer algum comentário sobre os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. É claro que todos esses temas poderiam ser satisfatoriamente abordados, desde que o longa tivesse, no mínimo, três horas de duração – em vez de 115 minutos apenas – e se, no final da narrativa, eles se conectassem de uma maneira a fazer com que o tema principal surgisse cristalino e devidamente aprofundado.
Infelizmente, não é isso o que acontece. Desenvolvidas em uma metragem curta para compreender todas as ambições narrativas de Zlotowski, as histórias paralelas criadas pelo roteiro deixam no ar inúmeras perguntas que não são respondidas, como estas: por que Laura aceita ir morar, juntamente com a sua irmã que é menor de idade, na casa de um sujeito que não conhece? Ela vê em André uma figura paterna? Se a resposta é sim, o que ela enxerga nele, uma vez que não sabemos nada sobre o seu pai? Por que André deseja com tanto afinco captar em vídeo algum tipo de presença fantasmagórica? Qual é a relação que ele mantém com o espectro que surge nas suas sessões espíritas? E os poderes de Kate são verdadeiros ou não?
Se, ao menos no final, essas histórias culminassem num comentário geral, os mencionados erros podiam até ser levemente perdoados. Porém, apesar de ter enxergado, depois de um intenso exercício de interpretação, uma certa unidade narrativa (no terceiro ato, descobre-se, aparentemente, que a intenção de Zlotowski era unir todas as histórias para mostrar como a Europa estava vivendo numa espécie de ilusão coletiva, completamente adormecida e cega para as engrenagens fascistas e antissemitas que começavam a funcionar no período entreguerras), essa interpretação, quando colocada à frente de cada uma das narrativas, gera um número ainda maior de dúvidas insolúveis.
Por exemplo: se a trama envolvendo as sessões mediúnicas existem para reforçar simbolicamente a ideia de que os europeus da época achavam que estavam vivendo em tempos pacíficos, não imaginando que o Velho Continente sucumbiria novamente sob o poder do autoritarismo, era preciso que o roteiro deixasse claro para o espectador que Kate não tinha nenhum dom de se conectar com os mortos. Mas isso não é claramente estabelecido. Esses questionamentos também surgem quando pensamos nas duas irmãs. No fundo, qual foi o verdadeiro papel exercido por elas na situação? Laura e Kate chegaram a ter alguma importância efetivamente? E a discussão sobre Cinema? Onde ela se encaixa no todo?
Histórias razoavelmente interessantes
E é uma pena que isso aconteça, uma vez que as histórias, em si mesmas, embora não sejam justificadas pelo roteiro e terminem sem ter um propósito real por detrás, são suficientemente interessantes para manter o espectador engajado. O problema é que a atenção concedida às quase duras horas de duração do filme não é de maneira alguma compensada. Nem mesmo as boas atuações do elenco (Portman fala tanto em inglês quanto em francês) e a riqueza visual (o design de produção de Katia Wyszkop recria a época com competência e sem glamourização, o que é condizente com o retrato obscuro pretendido pela diretora – se é que é possível saber quais foram as pretensões de Zlotowski), conseguem gratificar o espectador ao término do filme.
Com um título original que pouco tem a ver com as histórias narradas (a única cena que o justifica é aquela que mostra as irmãs falando sobre as estrelas que estão no céu – simbolicamente, talvez faça referência ao trabalho de atriz de Laura, mas esse aspecto da narrativa tem pouca importância, e ela não chega a virar uma estrela), Além Da Ilusão peca pelo excesso. Na ânsia de retratar uma determinada época em um determinado espaço, atirou para todos os lados, mas não atingiu nenhum dos seus objetivos. Se tivesse sido menos ambicioso, poderia ser mais bem-sucedido. Às vezes, o pouco é suficiente.