A disposição de produzir um filme – principalmente de grande orçamento – com temática pessimista é cada vez menor na grande indústria. Ainda que Expresso do Amanhã (Snowpiercer) seja até barato, em comparação com outros filmes estrelados por Chris Evans, mais conhecido hoje em dia como Capitão América, é um feito viabilizar uma história de distopia tão crua e de visual tão sujo quanto essa. A presença do galã com certeza ajudou a acontecer, mas sua performance e a composição de seu personagem não lembram em nada a figura do símbolo patriótico da Marvel, e isso é um alívio e uma das maiores qualidades do filme. Parabéns ao ator também, já que ele mostrou uma vontade genuína de fazer algo diferente, saindo da zona de conforto.
Baseado na clássica HQ O Perfuraneve (cuja resenha está AQUI), o longa mostra um trem em movimento perpétuo, carregando o que sobrou da humanidade após um desastre climático jogar o mundo em uma nova Era Glacial. O problema, exposto logo no início, foi causado por uma experiência mal sucedida para deter o aquecimento global, há cerca de trinta anos. A situação é um tanto absurda, se pararmos para pensar que uma tecnologia autossustentável como essa, aplicada a um trem, não faz o menor sentido, mas o tipo de olhar que o filme exige é outro. Com um sistema cruel de separação de classes, o trem é uma metáfora evidente, logo esse movimento contínuo, que nunca chega a lugar nenhum, serve bem a esse tipo de alusão. É nesse cenário que Curtis, vivido por Evans, precisa liderar um levante do povo miserável dos vagões do fundo, percorrendo toda a extensão de centenas de vagões, até a locomotiva, para encontrar Wilford, o criador, e tomar o poder.
Dirigido pelo sul-coreano Joon-Ho Bong, de O Hospedeiro (2006), Expresso do Amanhã realmente não tem a cara do cinemão comercial. Violento e com um desenho de produção que não se omite de mostrar sujeira e miséria, em contraste gritante com o luxo dos vagões da frente, ainda temos um ator com tipo físico improvável na situação desgraçada. Chris Evans defende bem seu papel, amparado por companheiros de elenco muito melhores do que ele, como Jamie Bell, John Hurt, Tilda Swinton em mais uma personagem caricata, embora adequada à narrativa, e Ed Harris, que sempre valoriza as produções nas quais aparece. Tudo isso embalado por um ritmo seguro, balanceado por boas sacadas visuais que mantém o interesse sobre qual será o destino do protagonista, do resto do seu grupo de excluídos e da máquina toda em geral. Se você já leu a HQ, não se preocupe, pois aqui os rumos e as resoluções são bem diversos.
Depois de levantar vários tópicos interessantes e reflexivos durante essa jornada pelo trem, o terceiro ato desta narrativa traz um pacote de revelações, revirando toda a noção construída pelo espectador e podem (devem) render boas discussões sobre a vida real. Porém, neste redemoinho, algumas que poderiam ter um peso dramático maior acabam diluídas, assim como é perceptível neste ponto que mais de um personagem poderia ter sido retirado da história, sem prejuízo algum ao roteiro, de autoria do próprio diretor com Kelly Masterson, roteirista do último (e ótimo) filme de Sidney Lumet, Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto. Determinadas situações e atitudes também acabam difíceis de explicar, contrariando em alguns momentos a lógica interna da trama, em uma sucessão de erros e acertos da produção.
Expresso do Amanhã termina de forma inesperada, para o bem ou para o mal, é bom frisar. Muita coisa vai ficar para a interpretação de quem o assistiu, o que também não é necessariamente uma afirmação de sua qualidade. Apesar de tudo, a força do texto de sua fonte, com a opção de levar esse conceito por outro caminho, coloca o filme entre as boas ficções científicas cinematográficas. Tem conteúdo, qualidade fundamental para um filme deste gênero; portanto, já vale a experiência.