Qualquer um que tenha ligado para um SAC público ou visitado uma instituição do Governo Federal ou Estadual sabe que alguns problemas nunca são solucionados, e, quando por um milagre eles são resolvidos, é só depois de muito tempo e dor de cabeça. Os inúmeros formulários, as infindáveis datas de espera, as imensas filas e a burocracia intransponível estão a serviço de uma agenda que consiste em criar uma barreira entre o cidadão e o governo eleito e fazer com que, devido ao cansaço, desistamos da luta. Diariamente, é travada uma guerra silenciosa entre nós e eles, e o derrotado é sempre o mesmo: o cidadão.
Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake), o novo filme de Ken Loach, é sobre essa guerra diária. E, ao contar a história do sujeito que, depois de sofrer um ataque cardíaco massivo e ter escutado dos médicos que estava incapacitado para voltar a trabalhar normalmente, tem o seu recurso de ajuda financeira recusado pela Assistência Social, o cineasta britânico e o roteirista Paul Laverty fizeram um verdadeiro filme de protesto, além de terem exposto com veemência as mentiras e ilusões vendidas pelo Estado de bem-estar social.
Com uma estrutura narrativa em espiral, pode-se dizer que a jornada de Daniel Blake é uma espécie de descida ao Inferno ou até mesmo um tormento kafkiano ao estilo de O Processo. Os desafios – que inicialmente pareciam ser simples obstáculos a serem superados – se transformam em pesadelos burocráticos dos quais o protagonista não consegue acordar. Além disso, esses desafios também se transmutam em uma aflição tecnológica, pois uma série de procedimentos só podem ser realizados pela internet, porém, devido à velhice e ao fato de pertencer a uma geração que não cresceu rodeada por dispositivos tecnológicos, Blake não consegue usar um computador.
No entanto, mesmo informando aos burocratas da Assistência Social que possui limitações cognitivas e físicas, ainda assim ele é obrigado a ir de escritório em escritório, de repartição pública em repartição pública, a contragosto e sempre sem sucesso. Ele até faz amizade com uma das mulheres que trabalham num desses locais, mas isso não o leva a lugar algum, pois, como vemos numa cena que a mostra sendo repreendida por uma superior, ajudar os outros a irem atrás dos seus direitos pode criar um “precedente perigoso”. Perdido dentro do sistema e sem saber ao que recorrer, Blake começa a ver as suas opções diminuírem cada vez mais.
Todavia, é errado enxergar Daniel Blake como um coitado ou aproveitador. Aliás, o filme faz questão de ressaltar a todo momento o quão independente, forte e decidido é o protagonista. O conflito vai nascer através do confronto de opiniões. Enquanto os médicos dizem que ele não está apto para voltar a trabalhar, o governo afirma que ele tem condições de se inserir novamente no mercado, mas cria todo tipo de empecilho no caminho, dificultando a busca do protagonista por emprego. Nesse turbilhão de informações contraditórias, tudo o que resta para ele é confiar em si mesmo e no próprio senso de justiça.
E será justamente no próprio senso do que é certo que ele encontrará forças para seguir em frente. Já nos primeiros minutos, ao ver uma mulher com dois filhos ser obrigada a entrar numa fila apenas porque chegou atrasada a uma consulta marcada, Blake interrompe a discussão acalorada e pergunta para a próxima pessoa que será atendida se ela pode dar lugar à mãe desesperada. E, quando todas as possibilidades de obter a ajuda financeira do governo se esgotam, Blake, inicialmente, expressa a sua frustração pichando a parede dum prédio federal (na melhor cena do filme), para, depois, mais calmo, recorrer à justiça comum.
No entanto, apesar de parecer que a jornada empreendida pelo protagonista não trouxe nada além de sofrimento, Blake pôde confirmar que a melhor maneira de auxiliar ou “assistir” o próximo é através da generosidade e da ajuda imediata. Afinal, é nos gestos pequenos e carinhosos, como consertar algo na casa de alguém e não cobrar nada, ou dar um pouco de dinheiro para uma pessoa que está com os bolsos vazios, onde reside a verdadeira solidariedade humana. As promessas de assistência social do governo nada mais são do que demagogia e palavras vazias jogadas ao vento, como Blake comprovou da pior maneira possível.
Com o embate clássico entre o indivíduo e a sociedade e tendo como protagonista um homem cuja liberdade entra constantemente em choque contra qualquer tipo de poder instituído (ao ver que os vizinhos planejam enriquecer através do contrabando de produtos esportivos, ele não faz nenhuma objeção), Eu, Daniel Blake termina mostrando um discurso que verbaliza para o público toda a raiva e frustração do protagonista, reforçando a intenção de Loach e Laverty de realizar uma obra de protesto. Acompanhando as provações enfrentadas pelo protagonista ao longo da projeção e lembrando daquilo que nós temos de aturar no nosso dia a dia, a vontade que temos quando o filme acaba é de gritar em uníssono: “Estado, saía da frente e pare de nos atrapalhar! Queremos viver em paz!” Eu, Miguel Forlin, estou com Daniel Blake!