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Entre Laços – Transexualidade com naturalidade!

Entre Laços reforça a ideia de que não existe pior crueldade do que ressaltar a diferença no lugar de educar a igualdade

Sim, apesar de já estarmos em pleno século XXI, certos temas ainda se fazem demasiadamente necessários serem debatidos. Pois o véu do hábito e do conformismo é feito de ferro, se debruçando imperceptivelmente, mas exercendo enorme peso. Infelizmente, para toda revolução, existe um movimento reacionário contrário. A aceitação das pessoas LGBT na sociedade como cidadãos exercendo legitimamente seus direitos é uma delas. E também por isso, filmes como o japonês Entre Laços (Karera ga honki de amu toki wa, 2017), de Naoko Ogigami, ainda são considerados pioneiros e corajosos – quando, infelizmente, já não deveriam ter motivo para acontecer.

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Tomo (Rinka Kakihara) é uma menina constantemente negligenciada pela própria mãe. Quando é abandonada mais uma vez, apela para o seu plano padrão: ficar com seu tio Makio (Kenta Kiritani). Entretanto, seu tio avisa que, dessa vez, está comprometido e morando com uma pessoa. Ao chegar na casa, Tomo descobre se tratar de Rinko (Toma Ikuta), uma mulher transexual. Acompanhamos, a partir daí, o estreitamento dos laços entre os três, a redescoberta do carinho familiar, e as dificuldades impostas pela sociedade sobre a característica particular de Rinko.

Primeiro, façamos as observações necessárias. Entre Laços passa longe de ser um filme perfeito. Ao contrário, sua montagem e edição deixam bastante a desejar, e muitos momentos mais impactantes da narrativa acabam sendo diluídos por conta de cortes realizados em momentos indevidos. Há uma pretensão mais elevada perceptível por parte da diretora: ela quer realçar o drama de Tomo e Rinko, mas sem ceder a pieguice. O plano não é completamente bem-sucedido. Embora não chegue ao ponto de um melodrama, existem certos excessos que, por conta dessa edição atabalhoada, acabam prejudicando o envolvimento com a trama.

A maior evidência, nesse sentido, é a apresentação quase didática dos problemas e preconceitos sofridos por Rinko. Embora sejam problemas reais, e seja louvável a sua exposição em tela, sua condução torna tudo muito previsível. Em um determinado ponto, torna-se praticamente certa a reação dos personagens a situações que, igual e previsivelmente, iriam acontecer. Não obstante, existe uma subtrama envolvendo o melhor amigo de Tomo, Kai, (Kaito Komie), que deveria servir de espelho para a própria vida e processo de autoaceitação de Rinko. Entretanto, devido a esses problemas de direção, esse espelho se perde, e Kai acaba sendo quase que desperdiçado na trama.

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Crescimento através do carinho

Mas o filme não possui apenas problemas. Muito pelo contrário. Possui muitos méritos; alguns deles incrivelmente corajosos. Ainda que o drama patine um pouco na pieguice, o mesmo não se pode dizer da interação familiar do trio protagonista. É formidável a maneira como Makio, Rinko e Tomo superam as resistências iniciais e passam a agir como família. Tudo parece absolutamente natural. Muito por conta das magníficas atuações: Ikuta é absolutamente soberbo como uma mulher transexual. Sua atuação transmite a feminilidade característica do recatado padrão japonês, sem nem remotamente parecer uma paródia. Ao contrário, tantos nos momentos dramáticos quanto extrovertidos, seus sentimentos e expressões são críveis e envolventes.

Mas quem realmente dá show é Kakihara. A atriz mirim rouba a cena, e constrói brilhantemente uma típica menina japonesa imersa em uma situação absolutamente atípica. Note que a progressão da personagem é estupidamente desafiadora: lidar com o abandono maternal, e ainda ter que compreender o que e quem é essa nova figura que se apresenta de maneira tão reconfortante, mas ao mesmo tempo tão distante da sua realidade. Tudo isso acontece, e, novamente, de maneira crível; a maneira como ela reage aos desafios e deleites que se apresentam na nova família é digna das melhores atuações. Ponto para Ogigami na condução da menina.

Realçando ainda mais essas excelentes atuações está a interação entre ambas. Por ser uma mulher transexual, Rinko entrou em contato muito cedo com o espectro da sexualidade; algo profundamente problemático em uma sociedade sexualmente reprimida e misógina como o japonesa. Mas esse calejamento prematuro acaba, de muitas formas, servindo bem a ela; já adulta, ela lida com enorme naturalidade em relação ao tema. E ela transmite essa mesma naturalidade para Tomo, que passa a entender uma lição muito simples – mas que precisa ser constantemente reafirmada para adultos menos inteligentes: muito mais importante do que os aspectos externos é quem a pessoa é. E a partir do momento em que Rinko é desafiada a trabalhar seus desejos e expectativas maternais, assim como Tomo passa a entender que a maior parte das pessoas observa o mundo pelo buraco de uma fechadura, uma relação muito mais bela do que qualquer outra que ambas já tiveram surge; e, mesmo que seja uma história sem vilões, é inevitável que exista aí uma certa catarse.

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Ao término da sessão, sentimentos particulares conflitantes; como crítico, foi inevitável sentir um certo desapontamento com algumas questões técnicas que prejudicam a fruição da obra enquanto tal. Por outro lado, como ser humano, muito me alegra que, aos poucos, possamos identificar uma certa progressão social: embora ainda tenhamos muito – MUITO – a fazer no processo de integração plena dos cidadãos LGBT – e sim, estamos falando dos seus direitos civis e da ainda completa ausência de isonomia – não deixa de ser reconfortante ver que, mesmo enfrentando inúmeros desafios, alguém como Rinko já enfrenta muito menos sofrimento e dificuldades que outras pessoas LGBT em outros momentos da história recente.

De fato, muito evoluímos, mas muito ainda temos a aprender. Principalmente no Brasil, onde as estatísticas alarmantes em relação à comunidade LGBT chegam quase em padrões de genocídio sistemático. Reflexo de profunda ignorância, sim; mas mesmo ignorância tem solução.

Uma delas? Estreitarmos os laços entre nós – que somos todos humanos.

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