Mike Flanagan cria um filme que respeita fãs de dois mundos em Doutor Sono
Qual é o melhor, o livro ou o filme? Essa é uma questão muito abordada quando discute-se adaptações para o cinema, especialmente quando a obra é de um autor que está vivo e tem mais de 35 longas baseados em seus livros (sem contar as adaptações para TV), como é o caso de Stephen King,que volta às tela em Doutor Sono (Doctor Sleep).
Inevitavelmente, o escritor é consultado em relação à qualidade desses trabalhos e muitos se surpreendem ao saber que ele não gosta de O Iluminado (1980) de Stanley Kubrick. King afirmou que a adaptação de Kubrick é “muito fria”, que a personagem Wendy (Shelley Duvall) é “uma das mais misóginas já colocadas em um filme” e considera que Jack Torrance (Jack Nicholson) não tem um arco dramático na história. O final do filme também dá um destino diferente do criado por King para o hotel Overlook. A insatisfação do autor o levou até a escrever e produzir uma minissérie, em 1997, que aborda vários detalhes e personagens não utilizados no filme.
Doutor Sono é baseado no livro homônimo escrito por King trinta e seis anos depois de O Iluminado. Após um pequeno prólogo que segue os eventos do primeiro filme, Danny Torrance (Ewan McGregor), agora adulto, é alcoólatra e vive como andarilho, fugindo de si mesmo e do seu passado. Ele tenta colocar a vida em ordem quando encontra uma jovem com poderes semelhantes aos seus e acaba assumindo a responsabilidade de tentar protegê-la de um culto conhecido como O Verdadeiro Nó.
Demônio na Garrafa
Danny Torrance lida com suas visões e seu passado com drogas e álcool, sem rumo e sem ambições. Ele começa a retomar sua vida com a ajuda de Billy (Cliff Curtis) e, durante uma reunião dos Alcóolicos Anônimos, tem um insight de como sua doença o conecta à seu pai, aproximando a história do livro.
Por quarenta minutos do filme, seu alcoolismo é o assunto principal. Embora seja uma ótima construção de personagem e renda alguns diálogos interessantes, deixa o filme um pouco arrastado, visto que tem duas horas e meia de duração. É o oposto da “frieza” do filme de Kubrick descrito por King. Danny passa a usar seus poderes mediúnicos de uma forma muito humana, que chega a ser tocante, e lhe rende o apelido de Doutor Sono, fazendo um paralelo com seu apelido de infância.
O filme brilha mesmo quando volta para a história de Abra, interpretada com excelência pela novata Kyliegh Curran que,com 13 anos,sustenta uma personagem complexa e interessante, continuando a nova tendência de personagens infantis mais espertos e independentes. Seus poderes são acima da média, mais fortes que os de Danny, e isso chama a atenção de Rosie Hat (Rebecca Ferguson,de Vida),que caça crianças com poderes junto com a sua trupe de ciganos. Cada membro da trupe tem um poder próprio, embora infelizmente isso seja pouco explorado com alguns personagens secundários, mas a personagem de Rosie é uma das poucas mulheres vilãs do cinema americano com motivação clara: ela precisa extrair o “vapor” de crianças mediúnicas para ajudar seu grupo a manter sua imortalidade.
Abra pede ajuda a Danny para se proteger do culto, e o que segue é um interessante jogo de gato e rato mediúnico,que prende a atenção e apresenta um mundo complexo e bem elaborado. Desde Scanners (1981), de David Cronenberg, não havia um filme com ideias tão empolgantes sobre esse assunto. O terceiro ato é um tributo ao trabalho de Kubrick e King ao mesmo tempo, esclarecendo alguns pontos sobre a mitologia do Hotel Overlook e os espíritos que nele habitam, e dando aos fãs do livro o final tão desejado.
Doutor Sono faz dezenas de homenagens ao filme de Kubrick, recriando enquadramentos, objetos de cena e usando sons e trechos da trilha sonora. O pomposo Dies Irae, que inspirou a trilha original, polvilha diversos momentos, criando uma nostalgia merecida. Alguns personagens voltam, interpretados por outros atores, e o resultado é melhor do que entrar na onda de recria-los digitalmente. Até o endereço da casa de Abra é 1980, fazendo menção ao ano de lançamento do clássico.
You’re magic like me
Ao escrever e dirigir Doutor Sono, Mike Flanagan assumiu a responsabilidade de agradar dois tipos de público. Tanto Stephen King quanto a família de Kubrick disseram que gostaram do longa, o que só reforça o cuidado que o Sr. Flanagan teve ao criar esta adaptação. Apesar de não ser tão aterrador quando seu predecessor, esta parece uma progressão natural para a história, focando em arrepiar ao invés de assustar. Com uma direção moderna, Flanagan consegue manter o interesse nos personagens o filme todo, e o orçamento generoso ajuda o filme a ter um acabamento que faz jus ao anterior.
Doutro Sono é uma ótima junção de nostalgia e tributos com material e sangue novo, deixando espaço para uma nova franquia que pode ficar bem longe do Hotel Overlook e dos personagens que ali residiam. A construção do mundo em que os personagens habitam estabelece alicerces para outros filmes ou até uma série de televisão.