Doutor Estranho foi comentado no Formiga na Cabine!
Sendo um dos principais responsáveis da nova onda do gênero super-herói nos cinemas, o estúdio Marvel (mais consolidado do que nunca, mostrando até mesmo independência com seu novo logo introdutório) já se sente mais do que seguro em apostar em filmes de personagens menos conhecidos e/ou mais difíceis de se trabalhar em tela. É com essa garantia de público, mais a promessa de inovar a própria fórmula, que Doutor Estranho (Doctor Strange) chega à sétima arte. Mas será que ele é mesmo “estranho” à essa manufatura?
Para inaugurar o lado mais místico do MCU (Marvel Cinematic Universe – Universo Cinemático da Marvel), nada mais justo do que escolher o Mago Supremo da Casa das Idéias. Doutor Estranho conta a história de Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), um rico e arrogante neurocirurgião que, após um acidente de carro, fica impossibilitado de mover as mãos com a mesma destreza de antes. Na tentativa de recuperar-se completamente, Strange gasta todo o seu dinheiro em diversos tratamentos que se provam ineficazes. É nesse momento que ele ouve falar de um local chamado Kamar -Taj, onde pode receber ajuda em sua reabilitação. Lá, Stephen é apresentado às artes místicas pela figura da Anciã (Tilda Swinton) e seu clã, que defendem o mundo contra as forças malignas que pretendem dominá-lo.
Em termos conceituais, Doutor Estranho devia, e merecia, se destacar dos outros treze filmes do estúdio. Infelizmente, essa nova aventura se mantém limitada na mesma fórmula que, por mais eficiente e divertida que seja, poda qualquer tipo de inovação e contundência que a obra poderia vir a ter, tornando-o mais um filme formulaico que acaba frustrando quem queria algo mais fora da curva.
O roteiro (escrito pelos não muito habilidosos Jon Spaihts, Scott Derrickson e C. Robert Cargill), mais apressado que de costume, não dá bagagem suficiente na apresentação de seu protagonista. É totalmente perceptível e incômodo, de certa forma, que sem o carisma de Benedict Cumberbatch – e a própria personalidade similar à de Tony Stark, já saturada dos filmes anteriores – em nada o personagem seria interessante para instigar o público a continuar acompanhando sua trajetória e importar-se com seus dilemas.
Outro problema do texto é a falta de desafios para o personagem. Além de aprender as artes místicas de maneira rápida demais – não me refiro à montagem, mas ao próprio tempo cronológico da história-, em nenhum momento sentimos que o personagem corre qualquer tipo de risco, seja ele físico ou dramático. Ainda sobre a rapidez de sua aprendizagem, o filme usa a desculpa de que Stephen tem “algo a mais” em si e que conseguiu ler e decorar rapidamente boa parte dos livros sobre magia, pois tem memória fotográfica – elementar, não?.
Porém, talvez o que mais incomode na narrativa são os famigerados alívios cômicos. Não existe sequer uma cena, exceto a do acidente, que não haja ao menos uma piada – sim, temos mais de uma em muitos momentos. O problema não é a existência da comicidade, mas, sim, sua obrigatoriedade e presença ao longo de toda a projeção, o que atrapalha diversos momentos que se conduziam muito bem em seu próprio clima de drama, tensão e até de introspecção mais filosófica. Novamente, a questão aqui não é o fator cômico em si, mas a ruptura forçada que ele causa na sequência. Até parece que os realizadores não acreditam na força de seus personagens, tendo assim que apelar para as risadas genéricas com piadas que poderiam sair da boca de qualquer um.
O desenvolvimento dos personagens coadjuvantes também é quase inexistente ou subaproveitado. A motivação do vilão Kaecilius é simplesmente citada de maneira breve e a própria trajetória do personagem o faz um algoz extremamente genérico, algo que consegue ser um pouco disfarçado pela competência de seu intérprete, Mads Mikelsen. Rachel McAdams, como a enfermeira Christine Palmer, não chega a fazer o papel da donzela em perigo, mas sua função na trama é praticamente irrelevante – a menos que você considere que o clichê das frases motivacionais tapem essa lacuna.
Ao juntarmos todas essas características do roteiro, a impressão é que Doutor Estranho surgiu da linha de produção como mais um produto genérico de um estúdio que está satisfeito com sua qualidade padrão. É ruim? Não. Ele realmente entretém, mas, sim, poderia navegar por mares menos tranquilos. Arriscar é um verbo que não está no dicionário da Marvel nos cinemas – salvo, de certa forma, Guardiões da Galáxia.
Felizmente, indo para a parte do conceito visual, o filme melhora e muito. Para qualquer leitor de quadrinhos, é evidente que transpor o universo, ou melhor, universos, do Doutor Estranho para o cinema seria uma tarefa hercúlea. Todas as ideias empregadas de conjuração de magias e distorções no espaço e no tempo são de saltar os olhos com sua beleza e eficácia. Por mais visualmente complexos que sejam os amálgamas do mundo místico e do real, é possível entender tudo o que acontece, até mesmo nas cenas mais dinâmicas. Mérito do experiente diretor de fotografia Ben Davis (Vingadores: Era de Ultron), de Charles Woods (Thor: O Mundo Sombrio) no design de produção e do próprio diretor Scott Derickson (O Exorcismo de Emily Rose), que também assina o roteiro.
As cenas de ação são bem conduzidas e até criativas no geral. Existem momentos em que a inventividade dá espaço para a velha porrada genérica, mas, dentro de todo o conjunto do filme, temos coisas novas e interessantes e é graças a esses elementos visuais que o filme consegue um destaque relevante dentro do MCU, merecendo ser visto na sala de melhor qualidade possível. Inclusive, o 3D vale a pena. Ainda continua sendo um bolo com o mesmo formato e sabor semelhante aos outros, mas colocaram um corante mais psicodélico, que gera um certo charme.
Doutor Estranho tinha tudo para ser o filme mais inovador, e até mais autoral, da Marvel. Visualmente falando ele tem uma personalidade própria e mesmo assim consegue se encaixar facilmente em todo esse universo que começou em 2008 com Homem de Ferro. Infelizmente, o roteiro possui os maneirismos do estúdio, tornando esta obra apenas mais uma dentro da linha de produção. Não que seja necessariamente ruim, é eficaz e diverte. Já aquela catarse com algo novo, não teremos no momento. Infelizmente, o conjunto da obra não é tão estranho como poderia, ou deveria, ser.
P.S.: Ouvi comentários durante a Cabine que falavam mais ou menos assim “ah, mas é filme de origem, o desenvolvimento mesmo vai ser no próximo filme”. Claro, todos tem sua visão sobre a obra. Mas quando as falhas de um filme de super-herói são justificadas pelo vindouro ou pelos outros que o orbitam, só me dá mais saudade de Richard Donner com seu belo filme autossuficiente.
Abaixo do trailer do novo filme, você encontra o da versão de 1978, feita para a TV!