Filme de Fernando Meirelles para a Netflix, Dois Papas é divertido e emocionante sem apelar para o sentimentalismo
Arrancar risos sinceros do espectador logo na primeira cena é uma proeza que poucos realizadores possuem no currículo. O brasileiro Fernando Meirelles, mais um a levar o nome do Brasil para Hollywood com seu já clássico Cidade de Deus, entrou para essa seleta lista com o simpático Dois Papas (The Two Popes), seu primeiro trabalho para a plataforma Netflix, que abre com um telefonema do Vaticano que não é levado à sério. Escrever mais do que isso é estragar a diversão.
Numa narrativa com vários flashbacks, todos com um ritmo tão poderoso quanto o apresentado no restante do filme, Dois Papas retrata o nascimento da amizade e também a trajetória de dois homens importantes para a Igreja Católica, cada um à sua forma. Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce), então cardeal, leva uma rotina simples, tanto em seu país natal, a Argentina, quanto em suas idas frequentes ao Vaticano. Já cansado da vida de sacerdote e disposto a se aposentar, ele envia algumas cartas ao Papa Bento XVI (Anthony Hopkins, de Westworld), na esperança de alcançar seu merecido repouso. Quando finalmente consegue contato com Sua Santidade, a conversa toma um rumo bem diferente do que ele imaginava.
Já ensaiando sua renúncia, muito por conta da crise que se instaurou no Vaticano em 2012, com denúncias de corrupção e abusos sexuais entre vários padres, bispos e cardeais, Bento XVI encontra em Bergoglio o seu oposto: bem-humorado, apaixonado por futebol e querido por seus fiéis. Sabendo da antipatia crescente entre alguns católicos com seu “mandato” e disposto a mudar essa situação, ele busca um substituto mais carismático. Essa jornada de descobrimento mútuo entre os dois rende as melhores sequências de Dois Papas, lindamente fotografadas pelo uruguaio César Charlone.
Concessões e mudanças
Meirelles, apesar de seguir a linha de fazer seu trabalho sem grandes transtornos com os produtores, parece ter tido abertura para acrescentar seu tempero em uma história que oferecia todos os elementos para cair nos piores clichês. O ritmo lembra muito seus trabalhos publicitários e o próprio Cidade de Deus, porém um degrau abaixo. Nas longas cenas de diálogos entre Hopkins e Pryce, o diretor investe pouco em invenções cênicas porque sabe os dois grandes atores que têm diante de suas lentes. O eterno Hannibal Lecter Hopkins, inclusive, consegue imprimir carisma em um Bento XVI que boa parte dos espectadores já entra na sala de cinema olhando com certa desconfiança. Parte dessa conquista é culpa das intervenções pop do roteiro escrito por Anthony McCarten, que vão de Abba à Beatles.
Já Pryce capta a alma leve e portenha de Bergoglio e consegue uma atuação convincente e com cara de que vai agradar a Academia, sempre com propensão a premiar quem se dá o desafio de interpretar personagens históricos. O quesito fé, que seria outro ponto delicado de ser tratado dentro de Dois Papas, aparece com delicadeza e sem se valer de discursos prontos. Os dois homens de Deus que guiam a trama são, antes de tudo, humanos e passíveis de muitos erros, ainda mais levando em conta os cargos que ocupam. Ambos caminham por uma linha de acontecimentos onde concessões e mudanças ganham significados ainda maiores em suas vidas e em vidas alheias. É comovente perceber que o estilo sisudo de Bento XVI vai aliviando ao longo de seus encontros com Bergoglio, ao ponto de percebermos um ponta de ciúmes do pontífice por seu colega que, diferente dele, experimentou o caos do mundo.
A breve e errônea ligação de Bergoglio com alguns militares ligados ao governo ditatorial que assolou a Argentina na década de 70 ganha atenção especial, chegando a tomar um tempo demasiado da projeção, mas nada que atrapalhe a experiência. Aliás, dá um brilho extra ao personagem, especialmente do meio para o fim do filme. Um fim em alto-astral e uma pequena interrogação sobre o que ainda aguarda o Papa Francisco que, mesmo tendo reconquistado muitos católicos, ainda está à frente de uma das mais poderosas e controversas instituições do mundo.
Dois Papas foi escolhido como filme de encerramento da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que neste ano optou por focar em produções que tivessem um DNA brasileiro, como é o caso deste último trabalho de Meirelles, que não esqueceu nenhum ingrediente para agradar a temporada de premiações, mas também sabe que há um gostinho, lá no fundo, que os “gringos” não dominam e poucas vezes se aventuram à experimentar.