Em 1983, o Dr. Dan Kiley identificou um transtorno psicológico e o explicou no seu livro The Peter Pan Syndrome: Men Who Have Never Grown Up. O princípio é simples: devido ao comodismo, superproteção ou outros fatores, alguns homens simplesmente são incapazes de amadurecer, apresentando características de imaturidade em certos aspectos (psicológicos, sociais, problemas sexuais), além de apresentar comportamentos narcisistas, de dependência, irresponsabilidade, rebeldia, etc. Acima de tudo, são homens que temem a solidão, o abandono e o fracasso. Costumam ter mais de 30 anos e irradiam bem-estar em um primeiro momento. A irresponsabilidade é uma de suas características principais, que exercem colocando a culpa nos demais e faltando a compromissos. No âmbito dos relacionamentos amorosos, não se esforçam para fazer parte de um casal maduro e estável.
Por inúmeros fatores que caracterizam o século XXI, essa síndrome é cada vez mais comum. É difícil conhecer um homem adulto – na faixa de idade dos 30 – que não apresente ao menos algum traço característico desse transtorno (incluindo este que vos escreve, por que não?). Entretanto, o curioso é que apesar de o conceito ser disseminado e bem conhecido, a síndrome não é formalmente aceita – não consta nas publicações respeitáveis de psicologia no mundo hoje. Pois bem, se a ciência e a medicina ainda relutam em tratar desses temas, a arte, sempre ela, sai na frente.
Desajustados (Fúsi) – parceria entre Islândia e Dinamarca – é uma singela obra que conta a história de como Fúsi, um colossal islândes de 43 anos, simplesmente abriu mão de crescer. Passa seus dias em uma monotonia agonizante que incluir comer seu cereal favorito, visitar sempre os mesmos locais, falar sempre com o mesmo punhado extremamente limitado de gente, comprar brinquedos e se divertir com jogos de tabuleiro. Sua rotina se limita a um trabalho que realiza quase que por osmose: voltar para casa e esperar pelo próximo dia. Fúsi cobre basicamente todas as características que compõem a síndrome. É um homem que praticamente se resume e se define por ela.
A monotonia da rotina do protagonista é brilhantemente retratada pelo diretor e roteirista Dagur Kári. A imensa maioria das tomadas acontece em ambientes fechados, com destaque para inúmeros closes nos personagens e ângulos incidentalmente claustrofóbicos, mostrando o desconforto quase constante do protagonista. Devido ao retrato de seus hábitos, quase não temos cenas externas. Quando vemos, o clima inclemente da Islândia nos dá uma noção do motivo dele não gostar de sair muito, mas o grande destaque está na trilha sonora. Intimista, coloca dramaticidade quando necessário. Quando desnecessária, simplesmente some para que possamos ouvir a constante, arfante e incômoda respiração de Fúsi. Uma vida que se arrasta a cada suspiro.
O grande mérito de Kári, entretanto, é não tratar o tema com condescendência ou excesso de drama. Fúsi é um desajustado, sim, usando a distante – mas apropriada – tradução do título, só que isso não o torna digno de pena. É apenas um homem introspectivo e tímido, que de muitas formas até aprecia sua rotina. O maior problema dele está na dificuldade de toda a realidade e as pessoas ao redor dele reconhecerem isso. Seus hábitos, sua aparência, sua forma de lidar com as coisas não são reprováveis em si, apenas estereotipadas pelos outros pela simples preguiça, ou ignorância, de aceitá-lo como ele é. Isso fica muito claro na relação doentia que mantém com sua mãe, que cultiva e aprecia a ideia de seu filho, do alto dos seus 40 anos, ainda ser uma “criança” dependente . Outro caso são seus colegas de trabalho, que permitem que a aparência desleixada e a timidez do protagonista aflorem neles características tão infantilizadas quanto as dele próprio. Afinal, existe algo mais pateticamente adolescente do que o bullying? Esse é um traço interessante que Kári coloca em seus personagens. Não existem heróis ou vilões nessa história. São pessoas tão falíveis quanto eu ou você.
Em se tratando de um filme que gira em torno de um protagonista tão dependente da sua rotina, qualquer pequena alteração, como a presença de uma nova pessoa em sua vida, já representa um ponto de virada na trama, além de uma prova de que sua aparente apatia esconde uma bondade perene, mas firme. Sua vida sofre três guinadas concomitantes em um curto espaço de tempo. Primeiro, a menina Hera. Recém chegada no prédio, ela força Fúsi para fora da sua zona de conforto, de forma tênue e inocente. Depois temos o amante de sua mãe, Rolf, que faz basicamente o mesmo que Hera, mas de maneira mais violadora e incisiva do que ela. E é após a ação de Rolf que o último ponto de virada é posto em movimento. Sjofn é depressiva crônica e é na difícil relação com uma pessoa nessa condição que o protagonista começa a nos demonstrar sua maior e melhor característica – uma insuspeita capacidade de colocar os outros sempre à frente de si mesmo. A atenção dada a menina Hera quase o põe em maus lençóis com a polícia. O perdão estendido aos seus colegas de trabalho termina com uma prova da sua dignidade. O caminho tomado na relação com Sjofn também não desanima Fúsi de cuidar e nutrir aquela alma quebrada.
Como já dito, Kári não nos mostra isso com condescendência. Na verdade, é uma desconstrução do prisma estereotipado pelo qual todos os personagens coadjuvantes – e o público – enxergam Fúsi. Ele não é bondoso por ser inocente e infantilizado. Ele é bondoso porque é. Simples assim.
Coppola comenta na chamada do cartaz que ”se todos fossem como ele, o mundo seria maravilhoso”. Bem, mais pessoas assim já existem. Às pencas. O problema é não as enxergarmos, pois perdemos muito tempo julgando e pouco tempo conhecendo.