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Depois da Tempestade – Lições que não se aprendem e espaços vazios!

Depois da Tempestade

Hirokazu Kore-eda é tido por muitos apreciadores do cinema como o sucessor do mestre Yasujiro Ozu. Guardadas as devidas proporções, podemos até justificar essa tese – tal qual Ozu, Kore-eda se interessa muito menos pela grandiloquência, pelo épico e pelas reflexões sobre momentos e características capitais da vida, típico do cinema japonês, e mais pelos pequenos eventos e turbulências da vida cotidiana. De coisas tão simples quanto o relacionamento entre pais e filhos, o diretor extrai matéria-prima para criar obras singelas e simples, mas que falam ao amigo espectador com tremenda contundência. Sua nova obra, Depois da Tempestade (Umi yori mo mada fukaku), é mais um exemplo dessa visão.

A trama se passa em alguns poucos dias que precedem a chegada de um tufão à costa japonesa – na verdade, é o 23º só nesse ano – e as pessoas começam a se preparar para ele. Aí inclusos Ryota (Hiroshi Abe) e sua família – cuja estrutura resiste, mas aos frangalhos. Em grande parte, culpa do próprio Ryota. Um escritor promissor quando jovem, Ryota foi vítima de sua própria incapacidade de lidar com seus vícios e com sua rotina – característica aparentemente herdada de seu falecido pai, de quem, apesar disso, não era próximo.

Depois da Tempestade

Sua dificuldade de lidar consigo mesmo acabou acarretando no fim de seu casamento com Kyoko (Yoko Maki), uma mulher centrada que, simplesmente, não via em Ryota um homem capaz de conduzir sua própria vida, que dirá conduzir uma família. O mais afetado é, obviamente, seu filho pequeno, Shingo (Taiyo Yoshizawa), que não entende porque sua mãe se comporta dessa forma e porque seu pai não pode ser um homem a se espelhar.

Quem observa esse desenvolvimento dolorosamente de perto é a matriarca da família, Yoshiko, interpretada pela incrível Kirin Kiki – que já estabelece um padrão de colaboração com Kore-eda, tendo aparecido também em Pais e Filhos e Nossa Irmã Mais Nova. Yoshiko abraça sobriamente a última fase de sua vida, com a ausência de seu marido lhe provocando um efeito inusitado – ela vê a oportunidade de desfrutar dessa derradeira fase, mas se vê constantemente lembrada de seu marido pelo que Ryota se tornou e pelo o que ele fez com sua família.

Os filmes desse diretor são marcados, principalmente, pela ideia de ausência. Os pequenos vazios de nossas vidas, aos poucos, se tornam grandes vazios e esses grandes vazios geram na mesma proporção. O cônjuge de Yoshiko não era um bom marido, mas um homem de vícios e pouco confiável. Isso faz com que ela se acostume à sua solidão presente, tornando-se uma pessoa pragmática e sem muitas esperanças. Entre elas, as famílias de seus filhos. Mas aí, a ausência de seu marido também como bom pai cria um vazio na vida de Ryota. Mesmo não sendo próximo de seu pai, a lacuna gerada por ele faz com que Ryota, inadvertidamente, se torne exatamente como seu pai era – um vazio nas vidas de sua esposa e seu filho.

Depois da Tempestade

Kore-eda é um mestre na construção de temas que parecem restritos, mas são universais. Ao retratar um drama particular de uma família comum do Japão, ele cria uma narrativa que poderia se passar em qualquer lugar do mundo. Os planos de câmera, que seguem uma mistura da tradição do cinema japonês da contemplação, mas sem tornarem-se longos demais para o cinema moderno, privilegiam os pequenos espaços e as expressões dos atores. Eles não nos permitem divagar em um universo cultural específico, mas nos conectar, sim, diretamente àquelas pessoas, que poderiam muito bem ser a nossa própria família. Ao sublevar a relação entre particular e universal em suas tramas, o diretor gera muita emoção, sem provocar demasiada comoção. Tão japonês, mas, ao mesmo tempo, tão universal.

Mencionamos que Kore-eda é muito comparado ao mestre Ozu pelos temas familiares. Mas os filmes do primeiro se diferenciam – o que é ótimo – e muito do segundo por uma questão de tom: em seus filmes, existe uma leveza que Ozu não imprimia em seus filmes. Ozu fazia questão de explicitar a vicissitude da existência humana, e todos os seus filmes eram trágicos ao ponto de o espectador se acostumar com a desgraça. Suas lições eram duras, amargas e terrivelmente realistas.

Já o outro entende que a vida não funciona dessa forma. Suas tramas e personagens são pequenas tragédias que se sobrepõem à pequenas catarses, nunca permitindo que o desespero ofusque  completamente a alegria. Em Depois da Tempestade, apesar da situação difícil em que todos os personagens se encontram, existe sempre um humor característico de quem decide seguir em frente ao invés de ceder às circunstâncias. A sobreposição fluida de humor e drama, de maneira simples sem ser simplista, torna aquelas pessoas incrivelmente reais e nos faz criar, como já dissemos, uma rápida conexão com elas. Kor-eeda difere de Ozu na medida em que entende que, na vida real, sempre todos os eventos são lições aprendidas. Na maior parte do tempo, ela simplesmente acontece e, na verdade, não existe lição nenhuma a ser tirada daí. Apenas mais um vazio que faz parte da nossa existência, cabendo a nós aceitá-lo ou não.

Depois da Tempestade

A grande metáfora do filme, no entanto, está justamente no tufão que leva ao título do filme. Conforme um grande número de tramas e personagens é introduzido, cada um com seu próprio arco, mas ligados ao todo, cria-se a necessidade de resolvê-las. Então vem o tufão. E assim como fenômeno natural varre o arquipélago, ele também cria a circunstância para que essas tramas se resolvam. Um deus ex machina anunciado desde os primeiros segundos do filme, mas que conclui brilhantemente a trama do filme ao melhor estilo de Kore-eda – totalmente previsível, absolutamente inesperado.

O diretor vem conseguindo uma marca impressionante – dirigir quase um filme por ano. Ainda mais impressionante é que todos os seus filmes rapidamente alcancem o posto entre os melhores do ano. Melhor para o amigo espectador, Pois Kore-eda parece ter muito ainda a nos dizer e é do nosso maior deleite ouvi-lo.

Que a ausência e o vazio, que Hirokazu Kore-eda tanto aprecia em suas obras, possam ficar longe de sua carreira.

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