Irmão contra irmão. Escravo contra império. Filme de 1959 contra filme de 2016.
Colocar todos os três acima em conflito é uma má ideia. O primeiro chama-se “fratricídio” e nunca é uma coisa legal; o segundo, pelo que nos mostra a História, 90% dos casos termina mal para os escravos (não me venha com Spartacus – ele também não se deu bem); e o terceiro é no mínimo injusto.
Não que o clássico de William Wyler e Charlton Heston não seja melhor – é, infinitamente. Mas de uma maneira diferente. O Ben-Hur de Timur Bekmambetov e Jack Huston tem uma proposta completamente diferente. Enquanto o primeiro era muito mais próximo da narrativa original do épico literário de 1880, escrito por Lew Wallace, primando pela construção dos personagens, com uma narrativa cadenciada que explode no clímax do filme, sua contraparte contemporânea aposta nos elementos característicos de blockbusters genéricos da última década – emulando em muitos aspectos a herança maldita deixada pelo Gladiador de Riddley Scott para o gênero – focando muito mais na ação e nos efeitos especiais do que na construção narrativa.
Não é que o filme não possua méritos, muito pelo contrário. Após esse primeiro parágrafo, o amigo leitor pode achar que este colunista é um panaca que está cometendo justamente o erro sobre o qual alertou no segundo parágrafo, comparando as duas versões. Não é isso. É simplesmente o fato de que as qualidades desse novo Ben-Hur se limitam aos seus aspectos técnicos, sobrando muito pouco para se ressaltar sobre a relevância artística, e isso é um problema, pois a inevitável sombra do filme de Wyler acaba se projetando. Mas isso deve ser evitado.
Pois não importa que o filme seja sobre um personagem chamado Ben-Hur. O próprio filme de Wyler tem imensas liberdades criativas em relação a obra de Wallace, e nem por isso deixa de ser uma grande obra sobre esse personagem. Assistir, por exemplo, uma tranqueira como Drácula 2000 não deve ser sua base para avaliar se o personagem é artística e historicamente relevante – o cânone da obra do vampiro deve falar sobre ele, e este é muito maior do que somente uma adaptação para o cinema. Drácula 2000 é uma porcaria por conta própria (imensa, aliás).
Divagações à parte, falemos sobre o filme. A linha narrativa obedece ao básico – o judeu de família abastada, Judah Ben-Hur (Jack Huston), vive uma vida feliz na Judeia ao lado de seu irmão adotivo romano, Messala Severus. Após ter abandonado sua família, Messala (Toby Kebbel) retorna como um oficial romano. Entretanto, durante sua visita, um atentado a vida de um oficial romano acaba obrigando Messala a punir Ben-Hur e o resto da família, destruindo a vida que tinham. A partir de então, Ben-Hur conhecerá a escravidão e a miséria, mas irá resistir com um único propósito – se vingar daquele que um dia chamou de irmão.
Na parca narrativa, nessa versão da história, o atentado que desencadeia os eventos que levam a prisão de Ben-Hur são muito mais maniqueístas – envolvem uma resistência dos nativos da região a ocupação romana. É difícil não encontrar ecos de crítica ao eurocentrismo e opulência ocidentais nesses tempos de crise migratória, posicionando “bonzinhos” e “malvados” nos seus devidos lugares. Mas qualquer reflexão que a história pudesse oferecer some debaixo da pesadíssima mão de Bekmambetov, diretor mais conhecido por filmes de ação e fantasia.
Enquanto o filme de Wyler se centrava na questão da vingança de maneira sutil, aqui o maniqueísmo narrativo é usado para reforçar o aspecto da compaixão. Isso não seria algo totalmente ruim – uma das liberdades narrativas tomadas pela versão de Wyler é a quase ausência do personagem Jesus (que sequer é creditado no filme), enquanto aqui o brazuca Rodrigo Santoro “empata” em terceiro lugar como chamariz do filme, logo atrás de Jack Huston e Morgan Freeman, e junto com Toby Kebbel – se não fosse simplesmente um recurso utilizado para simplificar a narrativa do filme e ganhar facilmente a afeição do público para o protagonista. O aspecto da compaixão, principalmente no final do filme, acaba se tornando apenas uma pieguice tola, que beira o constrangimento alheio.
E isso nem era absolutamente necessário – como ator, Jack Huston não deixa nada a desejar em relação a Heston, que embora fosse um ator clássico e tenha levado o Oscar pelo seu Ben-Hur, não era exatamente um ator polivalente, muitas vezes sendo mais lembrado pela canastrice do que pela habilidade artística. Huston está em uma boa jornada, e é dono da melhor atuação da película, entregando um Ben-Hur consistente com os eventos que vive. O que é interessante porque, com exceção de Freeman, nem Huston nem nenhum dos outros atores é exatamente uma grande estrela Hollywoodiana.
Falando sobre os atores, de fato, Freeman sempre acaba chamando a atenção. Embora aqui ele esteja em uma variação do famoso “mentor velho e sábio”, ele consegue nos entregar um Ilderim moralmente dúbio, mas ao mesmo tempo interessante e empático. Não apenas se sobressai apesar do relativo pouco tempo em tela, como aproveita para corrigir um dos mais conhecidos casos, e sempre ridículos, de whitewashing – o personagem de 59 era interpretado pelo galês branco Hugh Griffith pintado de negro. Em 59, isso passava; hoje é apenas patético, independente de Griffith ter levado o Oscar como coadjuvante pelo papel.
De resto, os coadjuvantes não chegam a prejudicar. O Jesus de Santoro é até carismático e suas aparições pontuais vêm junto de um impacto relativo. A Esther de Nazanin Boniadi também não compromete. Um dos maiores problemas do filme – tirando a rasa narrativa – está no antagonista Messala, de Toby Kebbel. E que problema. Kebbel vem de uma sequência horrenda de filmes – o Quarteto Fantástico (ou seria bombástico?) de Josh Trank e o tenebroso Warcraft de Duncan Jones. Mas esses dois filmes são tão ruins, mas tão ruins – quase tão ruins quanto Drácula 2000 – que não dava para saber exatamente qual o tamanho da carga de culpa de Kebbel sobre essas duas calamidades. Baseando-se em Ben-Hur, então é grande. Kebbel está uma belíssima jornada da escola Murilo Benício de atuação aqui – sua vida é um furacão de emoções intensas e reviravoltas que tirariam o chão de qualquer um, mas Kebbel nos mostra um Messala que está tão comovido quanto alguém indo à padaria. E sua constante apatia pesa – sendo um filme maniqueísta sobre vingança e compaixão que se estende por um período de quase uma década, você precisa de recursos técnicos para demonstrar a sutil transição da maneira de agir e pensar do seu personagem, e Kebbel falha miseravelmente nesse processo, principalmente em oposição a boa atuação de Huston.
Nós dissemos que o filme tem méritos, e eles não se resumem a Huston e Freeman. De fato, Bekmambetov optou por um épico de ação e efeitos especiais, e ao menos isso ele fez bem. Na verdade, os dois pontos altos do filme – a fuga na batalha das galeras e a corrida de bigas – são muito bem feitos. A perspectiva do personagem usada na batalha naval é extremamente criativa e inovadora, e os efeitos especiais funcionam muito bem com o 3D. A corrida de bigas é intensa e os pontos de vista ajudam a potencializar a tensão criada no momento – apesar dos figurinos bregas ao extremo (o corredor egípcio se passaria facilmente por um vilão dos Power Rangers) – além de contar também com um 3D que quase fazem valer a pena pagar mais caro pelo ingresso (mas só quase). No geral, o saldo visual do filme é bastante interessante e os cenários italianos valorizam o aspecto épico do filme. Ponto para Bekmambetov, que ao optar por manter sua característica como diretor de ação e fantasia, ao menos fez isso bem.
Esse novo Ben-Hur foi recebido com bastante ceticismo, justificadamente, diga-se de passagem. Nada indicava que ele pudesse estar à altura do clássico de 1959, e de fato ele não está, mas insistimos que isso não é justo. O filme tem suas qualidade e defeitos, mas os tem por conta própria, pela opção feita pelo diretor e pelos produtores. É essa opção que dificilmente permitirá que o filme seja muito mais do que um blockbuster genérico do período de entressafra do calendário Hollywoodiano. Mas, se o amigo leitor estiver procurando uma boa opção de ação e aventura para o fim de semana, pode até lhe servir bem.
Que o maior conto cristão do século XIX merecia coisa mais bem feita, merecia. Mas cabe ao amigo leitor me dar um “amém” ou não.
(P.S.: Drácula 2000 é realmente muito ruim. Sério. Meu Deus…)