Belos Sonhos só estreia no fim do ano, mas está na 40ª Mostra Internacional de Cinema!
Se muitas coisas são inerentes à condição humana, certamente a maior é a ausência de algo. Por mais que nos encontremos numa situação de alegria, nunca a plenitude é alcançada e a sensação de falta nos acompanha a todo instante, mesmo estando inconsciente dela na maior parte do tempo ou não havendo uma perda que a justifique. O italiano Belos Sonhos (Fai Bei Sogni) é uma obra sobre o vazio. No entanto, diferente da condição que acompanha a nós todos, a ausência de Massimo (vivido pelo excelente ator mirim Nicolò Cabras e por Valerio Mastandrea) é de uma concretude trágica: aos nove anos de idade sua mãe morre de forma misteriosa. A partir daí acompanhamos diversos momentos do órfão, dá infância até a vida adulta.
O grande mérito do diretor Marco Bellocchio é retratar as variantes da vida de Massimo, a partir de sua melancolia por conta de um luto inacabável. A relação conflituosa com o pai, a paixão pelo futebol, as relações amorosas, as amizades, as conversas com o padre professor, o trabalho de jornalista, a cobertura dos conflitos nos Balcãs circundam a agrura interior de um homem cuja a vida sempre está por iniciar. Massimo de imediato não aceita a morte da mãe e pelas décadas seguintes não a supera.
Toda a narrativa é permeada pelo olhar do personagem, um olhar perdido, para o nada, seja no momento reflexivo, seja diante da tragédia da guerra. Vemos que Bellocchio domina perfeitamente a intenção dos olhares no filme ao selecionar um ator mirim com olhos semelhantes ao do principal. Ao mesmo tempo, as mulheres que aparecem na vida de Massimo têm a aparência e olhar da mãe, seguindo o princípio freudiano do complexo de Édipo. Isso fica claro nas referências às obras Belfagor, O Fantasma do Louvre e Nosferatu. Ao assistir a primeira obra com a mãe, com a aparição do personagem fantasma, esta a abraçava pedindo-lhe proteção. Já em relação à obra vampiresca de 1922, é uma perfeita analogia ao sentimento de Massimo, um homem que apenas vive na sombra, vítima de sua própria condição de não ir além, de sempre permanecer repousado no caixão de sua mãe.
E por mais que o olhar auxilie a trama e a tristeza de Massimo seja o foco narrativo, poucas lágrimas aparecem. Enquanto o pai lhe narra a morte da mãe aconselhando a não chorar, o padre professor o chama de covarde por fugir da aceitação da morte de quem amava. Acompanhamos, portanto, o drama de um personagem incapaz de conviver com tamanha ausência, pois em muitos momentos da narrativa não parece faltar a Massimo sua progenitora, mas falta-lhe seu próprio eu, já que não encontra em si a forma adequada de se posicionar no mundo. Isso enquanto que os outros ao seu redor, por mais que lhe direcionem tal posicionamento, não conseguem gerar respostas sobre como se realocar existencialmente.
Bellocchio nos dá a fórmula de encarar a vida, sem mergulhar na pieguice da auto ajuda: devemos explorar a vida com não apenas com a lupa da alegria, mas também da tristeza. Por mais que a ausência, qualquer que seja, se intensifique a vida é uma ordem, ou nas palavras de uma personagem, “um homem feliz não consegue nada de bom na vida”. Não se faz aqui uma mera apologia á depressão, mas é a partir da consciência da falta que possamos agir para preenchê-la sem ser de forma fugaz e inócua.
A simbologia do plano do corredor vazio ora organizado, ora cheio de tralha, ora na brincadeira de esconde-esconde com a mãe é uma bela metáfora desta consciência. O desfecho da trama aponta para isto, a superação deve se dar pela verdade, pela sobreposição do olhar sobre o fato a partir de uma ordem estabelecida. O luto só se desfecha quando a mentira que inventamos como medo ou fuga é afugentada pela verdade ocultada para nos fazer sentir melhores, seja esta mentira a nossa, seja a dos outros.
Belos Sonhos é um filme encantador, justamente por abordar a vida de acordo com a complexidade que ela carrega. Fugindo de uma abordagem sentimentaloide ou do senso comum da superação dos sofrimentos, a narrativa possui uma dinâmica e leveza que transporta o espectador às suas mais íntimas aflições sem decair no desespero ou na futilidade do êxtase obrigatório. É uma trama sobre perdas e suas aceitações. Coisas perdidas que devemos deixá-las ir, simplesmente para que as ganhas venham e ocupem o espaço deixado, mesmo que tal espaço não seja completado pelo que vem.
(Por conta da estreia em circuito nacional apenas em dezembro, só há a versão original do trailer)