Finalmente nosso país tem a estreia oficial de As Memórias de Marnie (Omoide no Mâni / When Marnie Was There, 2014), comentado como o último filme produzido pelo celebrado Studio Ghibli, responsável por produções muito amadas pelos fãs de animações japonesas como A Viagem de Chihiro (2001) e Meu Amigo Totoro (1988). O estúdio deve suspender por tempo indeterminado a produção de longas metragens após a aposentadoria de Hayao Miyazaki, um dos donos e diretor dos principais sucessos da produtora.
O filme estreou no Japão em julho de 2014 e por lá já foi até lançado em DVD. No Brasil, foi exibido pela primeira vez na retrospectiva Studio Ghibli, como parte da programação do Festival de Cinema do Rio de Janeiro em outubro último. Dirigido por Hiromasa Yonebayashi, que já trabalhou com Miyazaki inclusive em A Viagem de Chihiro, é um filme doce, que ao mesmo reúne as características marcantes das produções do estúdio como também novidades, que podem causar estranheza para quem está habituado a essas marcas.
Como de praxe em todas as criações do estúdio – e também em quase todo cinema de animação japonês, diga-se de passagem – o desenho animado em nenhum momento abre mão de densas mensagens humanistas para tornar o filme mais palatável para o público mais jovem. Tampouco é fechado para essa parte da plateia, tornando-se uma obra altamente sedutora e enriquecedora para todas as idades, desde que afeitas ao ritmo mais lento, típico das produções orientais. Apresentam personagens envoltos em narrativas de exímia sensibilidade, vivenciando angústias comuns ao amadurecimento que, muitas vezes, perduram por longos anos da vida adulta.
Estão presentes o sobrenatural, como fuga da realidade sufocante, e a visão da natureza como extensão do estado de espírito dos personagens. Também apresenta protagonistas femininas fortes e ao mesmo tempo fragilizadas. Porém, ao contrário de outras produções Ghibli, As Memórias de Marnie não se aprofunda no fantástico ou no surrealismo, mas sim em um drama terrivelmente realista para muita gente: a solidão, a dificuldade de autoaceitação e, até mesmo, depressão.
A história gira em torno de Anne, uma garota de doze anos com grande talento para o desenho. A menina tem grandes dificuldades de relacionamento, que não consegue ter amigos e tem dificuldades em se vincular até mesmo com a mãe adotiva. Vive solitária em silêncio, tendo no desenho sua única forma de expressão. Isso até um dia em que, após uma crise aguda de asma, é aconselhada pelos médicos a se mudar da cidade grande onde mora para uma temporada no interior. Anne então se muda para a casa dos tios em uma prosaica vila de pescadores. A timidez e a falta de tato para com os novos conhecidos a fazem sofrer ainda mais, quando se vê obrigada a lidar com festivais e relacionamentos forçados. A paisagem deslumbrante, no entanto, funciona como uma válvula de escape para a dor que a aflige a garota, que se encanta com o ambiente.
Em meio a esse turbilhão de sentimentos, Anne encontra uma linda mansão abandonada pela qual sente forte atração. Após encontrar a casa aparentemente vazia, a menina é surpreendida pela presença de uma suntuosa família e, principalmente, por Marnie, uma garota loira que logo a cativa por sua impressionante sensibilidade. Pela primeira vez na vida, Anne ganha uma amiga, mas os súbitos desaparecimentos e reaparições de Marnie, as contraditórias condições que a luxuosa residência se apresenta, além das referências a fantasmas nas redondezas levam Anne e o espectador a se questionarem: seria Marnie uma pessoa real, uma assombração, um sonho ou um delírio da mente solitária de Anne? Não importa. Com a nova amiga, a garota aprende a se abrir, a aceitar a si própria e o amor dos outros, a ver o mundo com as cores que emprega em seus desenhos.
Adaptado do romance homônimo de 1967, da escritora inglesa, Joan G. Robinson, As Memórias de Marnie, é um filme intimista e delicado, de suavidade ímpar ao narrar dramas que muitas pessoas sentem pesar tanto. A direção japonesa do livro britânico apenas enriquece a profundidade do enredo, usando diversas metáforas para ilustrar como crescer pode ser doloroso, mas como a esperança e a salvação podem estar dentro de nós mesmos. O crescimento da personagem principal é muito bem traduzido, indo do sorumbático para o êxtase em transformações sutis nos traços do desenho.
As Memórias de Marnie pode estar aquém de outras emblemáticas produções do Studio Ghibli, mas assim mesmo superior a muito do que vê nas salas comerciais atualmente. Se esta é a obra que marca o fim das três décadas de história do amado estúdio, então o ponto final foi muito digno.