Afterimage é um comovente grito de liberdade
Andrzej Wajda foi o maior cineasta da história da Polônia, e não faço essa afirmação apenas por causa de seu talento, mas também pela maneira com que a sua trajetória pessoal se confundiu com o desenvolvimento histórico do país. Assim como os poloneses no século XX, ele dedicou sua vida ao enfrentamento de um único inimigo: o totalitarismo. Fosse através de armas – durante a Segunda Guerra Mundial, se uniu à Resistência -, fosse através do Cinema, ele nunca abandonou as trincheiras. Afterimage (Powodoki), filme realizado por ele meses antes de falecer, é o seu último grito de liberdade.
Baseado em uma história real, o longa é protagonizado pelo pintor vanguardista Wladyslaw Strzeminski (Boguslaw Linda). Criador da teoria estética que dá nome ao filme e professor na escola de Artes de Lodz, ele levava uma vida movimentada, dividindo a atenção entre os alunos, as pinturas e sua filha, a precoce Nika (Bronislawa Zamachowska). No entanto, em 1948, ano em que o Partido Comunista colocou suas garras sobre a Polônia, ao se negar a usar o talento para fazer propaganda política, teve sua licença revogada e foi impedido de trabalhar, lecionar ou expressar os ideais, situação que lhe custou a saúde e vida.
Mantendo-se fiel ao engajamento político estabelecido já em Geração, o seu primeiro longa-metragem, Wajda cultivou o costume de se apropriar de história reais para transformá-las em manifestos libertários. Seja através do nazi-fascismo, em obras como Kanal e Cinzas e Diamantes, seja através do comunismo, como em Walesa, ele sempre empregou o conceito do totalitarismo como um espelho de duas faces, no qual os instintos mais perversos do Homem encontram reflexo, mas a liberdade humana, não. Foi para corrigir essa injustiça que ele ofereceu as lentes de sua câmera aos heróis reais e fictícios que lutaram por seus direitos naturais.
Em Afterimage, as coisas não são diferentes. Sob a sua batuta, a comovente história do vanguardista Wladyslaw Strzeminski transcende e se transforma em um comovente libelo contra a opressão estatal e a ideia de que as obras artísticas devem respeitar uma agenda política e funcional. Para que essa mensagem chegasse aos olhos, a mente e o coração do espectador, o diretor criou um filme de contrastes. Sutil e economicamente, como apenas os mestres de uma determinada arte conseguem ser, ao passo que deixou a história caminhar, nunca sufocando-a debaixo de formalismos, ele compôs breves momentos de contraposição estética.
Mostrando logo no início uma aula ao ar livre, em que a exuberância vegetal, a felicidade compartilhada pelos jovens alunos e uma brincadeira feita por Strzeminski transmitem a jovialidade do instante, Wadja corta para uma sequência de cenas nas quais as liberdades do pintor começam a ser cerceadas. Posteriormente, essa mesma dessemelhança é ressaltada no momento em que o quadro pintado por ele é encoberto pelo vermelho de uma bandeira pendurada do lado de fora do seu apartamento. Também há o contraste entre as cores cinzentas, predominantes no interior da maioria dos ambientes, e as cores vivas do “Cômodo Neoplástico”, sala projetada pelo pintor e localizada no museu de Lodz.
Além disso, existem as diferenças evidentes entre os jovens que trabalhavam para o governo e os jovens que compareciam às aulas, e o contraste mais importante: a inocência de Nika contra a brutalidade do Estado autoritário. Por vezes, vestindo um casaco vermelho – um símbolo do amor que carrega dentro de si -, ela caminha entre os escombros como um estandarte de esperança, um farol no meio da destruição e do caos. E o impacto de sua presença na narrativa aumenta ainda mais quando percebemos que, mesmo sendo intelectualmente precoce, ela mantém a inocência típica de sua idade (a foto que carrega de um lado para o outro é um símbolo de sua bondade).
Domínio técnico e narrativo
O restante do filme, por sua vez, retrata, através dos enquadramentos sempre precisos e da direção de arte (que deixa os espaços fechados ainda menores), tanto a organização burocrática do Partido Comunista quanto o sufocamento sentido pelo protagonista. No final, Wajda ainda encontra tempo para mostrar o embotamento moral do povo polonês. Se a cena em que Strzeminski desmaia e ninguém o ajuda pode ser considerada simples e apelativa, o diretor se redime no instante em que o personagem cai no meio de manequins e, do lado de fora, as pessoas continuam caminhando, como se fossem zumbis.
E é dessa maneira, com um comentário melancólico sobre a empatia humana, que Wajda finaliza o seu último filme e se despede não só do Cinema, como também da vida. Comovente, sólido e corajoso, Afterimage é, assim como o recente Eu, Daniel Blake, um manifesto político capaz de mexer com os nossos corações.