Falta de dramaticidade anula personalidade de A Viagem de Fanny
Os ingredientes para uma grande comoção estão todos presentes. Uma história baseada em fatos, clima de perseguição nazista, uma viagem arriscada atravessando o país, crianças indefesas tentando escapar do pior. Em A Viagem de Fanny (Le Voyage de Fanny), tudo poderia funcionar e nos levar a um bom filme que, na melhor das hipóteses, seria cheio de delicadeza e sentimento. Ou, com menos otimismo, pelo menos a um dramalhão exagerado, daqueles de secar a alma de tanta lágrima. No entanto, alguma coisa vai mal ao longo de seus 94 minutos.
Fanny Ben-Ami (Léonie Souchaud) e suas duas irmãs mais novas são deixadas por seus pais em uma instituição durante a ocupação nazista na França. Na época, muitos lugares assim surgiram no país para abrigar crianças judias com alguma segurança enquanto seus pais tentavam escapar do nazismo. As coisas seguem razoavelmente bem, até que o cerco alemão se fecha. As crianças precisam ser transferidas e, depois, precisam tentar fugir para a Suíça. Primeiro, com a ajuda de uma das responsáveis pela instituição, em seguida, por conta própria.
Está armado o cenário para uma viagem pela França ocupada, na qual acompanharemos o grupo que se forma com Fanny, suas irmãs e outras crianças e jovens adolescentes.
Dramas não desenvolvidos
A grande carência de A Viagem de Fanny está justamente naquilo que, em tese, seria mais fácil de alcançar: a emoção. Há uma grave deficiência do filme em construir uma dramaticidade que pareça autêntica ou suficientemente intensa para afetar o espectador. E isso acontece por diversos motivos.
Desde os primeiros minutos, a direção da francesa Lola Doillon, somada à montagem e edição do filme, se mostra problemática. Uma cena de despedida começa já adiantada e não há tempo de saber quem são aquela mãe e aquela criança. O choro da primeira é automático, protocolar, breve. Não sabemos nada de antes e, assim, não há construção.
Essa falta de timing dramático acompanha todo o filme. São cortes mal executados e cenas abruptas que começam e terminam sem um arco de drama completo que seja capaz de conectar ou fazer brotar sentimentos. É como se a única preocupação fosse mostrar, etapa a etapa, a jornada das crianças, sem tempo para expressar como se sentem, sem tempo de aprofundar seus medos e dar consistência a seus atos de coragem. É tudo superficial.
Nem medo nem tensão
Como seria natural nesse tipo de história, momentos de tensão e medo são esperados. O problema é que a sensação de ameaça também não se realiza. As tentativas são tão clichês e mal elaboradas que beiram o risível. A exceção fica por conta do momento em que estão sendo mantidos trancados por policiais franceses. Há, no clímax dessa sequência, uma intensidade angustiante e verdadeira, um dos raros momentos do filme em que se constrói o desespero de seus personagens mirins.
O final dessa sequência, entretanto, revela as deficiências do roteiro, que, além de esquemático e previsível, ainda explica mal as coisas. Isso pode ser visto no modo como se desenrola a fuga daquele local e, mais adiante, na falta de sentido entre um diálogo, que termina com uma negativa, e a cena seguinte, que mostra o contrário.
Essa desorganização narrativa e cênica atravessa e compromete todo o filme. Também em nada ajuda a atuação do elenco infantil, que vai de pálida a exagerada, com poucos momentos de brilho.
Por mais que possa parecer repetitivo diante da quantidade de filmes sobre o tema, insistir em lembrar as atrocidades dos regimes fascistas nunca é demais. Fazê-lo revelando o ponto de vista de crianças perseguidas é ainda mais importante. Por isso, é sempre uma pena quando um projeto cheio de boas intenções acaba não funcionando, ao contrário de outro filme sobre o tema: Os Meninos que Enganavam Nazistas.
No final das contas, A Viagem de Fanny se mostra uma obra sem nenhuma personalidade, onde todas as possibilidades de emoções se perdem pela falta de estrutura dramática, coesão narrativa e por repetição de clichês.