A simplicidade em A Tartaruga Vermelha
O Studio Ghibli, fundado em 1985 pelo gênio Hayao Miyazaki e outros, se tornou, desde o início, com o lançamento da animação O Castelo no Céu, um selo indefectível de qualidade. Com apenas 21 obras produzidas nos seus 32 anos de existência (se pensarmos em outras empresas de animação, como a Disney, por exemplo, esse número modesto chama atenção), o estúdio japonês se estabeleceu no cenário cinematográfico através de seus filmes adultos, filosoficamente ricos e comoventes. Obras-primas como Túmulo dos Vagalumes, A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado (mais recentemente, O Conto da Princesa Kaguya e Memórias de Marnie) costumam não poupar os seus espectadores, devastando-os emocionalmente.
A mesma coisa acontece com A Tartaruga Vermelha (Le Tortue Rouge), a mais recente animação coproduzida pelo estúdio. A qualidade vista no primeiro longa metragem do diretor holandês Michael Dudok de Wit coloca o seu filme lado a lado com os títulos mencionados acima. O protagonista da história é um homem sem nome que, após enfrentar uma forte tempestade, naufraga numa ilha deserta. Para fugir de lá, ele constrói jangadas de bambu. No entanto, sempre que as coloca no mar, uma tartaruga vermelha gigantesca as ataca, o impedindo de escapar. Num dia, ao se deparar com ela, ele a mata ferozmente. Porém, para a sua surpresa, a tartaruga magicamente se transforma numa mulher.
O primeiro ato de A Tartaruga Vermelha mostra o protagonista da história tentando sair da ilha. Acompanhado apenas dos poucos animais que habitam o lugar, ele enfrenta a solidão de ser o único humano em um ambiente praticamente inóspito. Nesses minutos iniciais, é impossível não enxergar a ilha de maneira alegórica, como se ela fosse uma extensão figurada da sua consciência. As duas magníficas sequências de sonhos, uma retratando o desejo de voar do personagem e outra mostrando alguns músicos tocando em plena praia, são, além de imensamente poéticas, representações oníricas dos anseios de fuga do protagonista.
Perfeitamente ilustrada na sutil transição que alterna a figura do corpo deitado do protagonista por uma imagem aberta da ilha (a semelhança entre elas é impressionante!), essa conexão física e simbólica do personagem com o ambiente que lhe rodeia funciona como uma poderosa metáfora, trazendo à tona e ressaltando a famosa frase de José Saramago: “Todo homem é uma ilha”. Mas não nos esqueçamos que essa epígrafe do escritor português foi uma resposta pessimista aos eterno verso do poeta inglês John Donne: “Ninguém é uma ilha”. É difícil dizer qual dos dois está certo, mas se depender de A Tartaruga Vermelha, o espectador terá uma resposta.
Deixando claro que até mesmo os animais necessitam de alguém para viver ao lado (os siris andam acompanhados, os pássaros voam em bando e, num dos elementos mais belos da história, a tartaruga vermelha insiste em impedir a fuga do protagonista porque não deseja que ele vá embora), o filme, ao introduzir a personagem da mulher, faz com que o homem diminua as suas aflições, considerando a possibilidade de construir um paraíso particular na ilha, como se fossem Adão e Eva. E o fato disso começar a partir de um elemento mágico (o que, devido ao tom alegórico estabelecido desde o início, nunca soa estranho ou incomoda o espectador) é essencial para mostrar que a necessidade humana de compartilhar a vida com alguém é algo que a a própria natureza se encarrega de satisfazer (nesse sentido, a cena final é arrebatadora em sua coesão).
E é essa sublime conclusão que acaba nos levando aos melhores momentos da história e a uma das suas mais ternas mensagens: as décadas em que o casal decide por viver na ilha ao lado do filho (eles concebem uma criança) e a ideia de que, na vida, não precisamos de muito para alcançar a felicidade. É fascinante ver que, apesar da situação peculiar de ilhado na qual o protagonista e, posteriormente, a sua mulher e filho se encontram, a vida dos três personagens são em quase tudo similar à nossa: a paixão inicial entre duas pessoas, o sexo, a concepção de uma criança, a vida em família, a criação e crescimento do filho e a velhice dos pais. A diferença é que, em momento algum, eles são distraídos por coisas supérfluas às quais nós, nessa espécie de ilusão coletiva, damos um valor desproporcional.
Uma animação perfeita.
Tecnicamente, o filme é tão perfeito quanto a história que narra. Com traços simples e nem um pouco chamativos (ao contrário de algumas animações do Studio Ghibli) que são importantes para a temática de simplicidade e desapego material proposta pelo filme, a animação de A Tartaruga Vermelha é auxiliada pelo ritmo lento e contemplativo construído pelo diretor e Céline Kélépikis, a montadora. O design de som, por sua vez, não tendo de se preocupar com as falas dos personagens (não há diálogos no filme), transmite toda a realidade sonora da ilha através dos sons dos animais, do vento, das águas e árvores. Já a trilha sonora de Laurent Perez Del Mar (um sobrenome apropriado à história) é como um quarto personagem, transmitindo a solidão, a tristeza e a alegria através de acordes comoventes.
Indicado ao Oscar de Melhor Animação (veja a crítica de A Minha Vida de Abobrinha e Kubo e a Espada Mágica), A Tartaruga Vermelha é o melhor filme entre os concorrentes. E uma curiosidade salta aos olhos: dos cinco indicados, é o filme com a técnica de animação menos impressionante, no entanto, é a obra mais profunda e comovente de todas. Por causa de sua simplicidade, é a única que fará o espectador sair da sessão com os olhos marejados e uma reflexão relevante sobre a realidade das nossas próprias vidas a ser feita nos dias subsequentes. Até mesmo a forma do filme reflete com perfeição a essência de sua narrativa!