A Origem do Dragão e do mal-estar dos fãs de Bruce Lee
Até que demorou para que algum gaiato aparecesse com mais um filme sobre o icônico Bruce Lee, um assunto que, com certeza, atrai uma atenção razoável. Já se foram mais de duas décadas depois de Dragão: A História de Bruce Lee, produção com cara de Sessão da Tarde e escolhas muito discutíveis no roteiro, envolvendo uma maldição sobre o protagonista. Evidente que, além disso, também toma INÚMERAS liberdades absolutamente inverossímeis sobre a vida de Lee, mas ainda é superior ao mais novo produto a explorar seu nome. A atrocidade foi batizada com o pomposo nome de A Origem do Dragão (Birth of The Dragon).
Co-produção entre EUA, China e Canadá, desembarcou no Festival de Toronto em 2016, ficando engavetado até o segundo semestre deste ano (mau sinal). Dirigido por George Nolfi (péssimo sinal, já que ele é o diretor de Agentes do Destino), o filme não apenas naufraga com os mesmos erros comuns de cinebiografias, mas potencializa os deslizes quando inventa em cima dos fatos. Aliás, que fatos? Estamos falando de um caso específico muito mal explicado e com mais de duas versões.
A Origem do Dragão não procura cobrir a trajetória da curta vida de Bruce Lee, mas se ocupa de sua famosa luta com Wong Jack Man, representante do estilo Shaolin do Norte. Complicado, pois sabe-se que a tal disputa foi uma espécie de divisor de águas na vida do ídolo, levando-o a criar seu próprio sistema, o Jeet Kune Do, após o ocorrido e abandonar o tradicional Wing Chun que trouxe de Hong Kong e lecionava em San Francisco. Enfatizo a complicação de levar um fato como esse às telas, pois trata-se de algo que aconteceu em 1964 e com pouquíssimas testemunhas.
A inspiração da dupla de roteiristas Stephen J. Rivele e Christopher Wilkinson (de O Dono do Jogo, cinebiografia de Bobby Fischer) foi o artigo Bruce Lee’s Toughest Fight, de Michael Dorgan, publicado em 1980. A verdade é que escrever um roteiro com base em um artigo não parece a melhor das ideias, argumento fundamentado pelo sem graça Um Homem Entre Gigantes. Inclusive, se você se garante no inglês, confira o artigo neste link e perceba que as obscuridades do caso são tantas que os caras apenas usaram a luta para puxar outras subtramas sem noção. Testando a paciência do público no processo, claro.
Em quem eu acredito?
Um resuminho rápido. Linda Lee, viúva de Bruce e autora de uma das inúmeras biografias sobre o astro, conta que Wong Jack Man seria o autor do desafio, representando a comunidade chinesa, que proibia o acesso de suas artes marciais aos ocidentais. Claro que ela pinta o falecido como o desbravador, que desafiava a tradição e ensinava quem quisesse aprender. Linda ainda fez questão de afirmar que o desafiante foi rapidamente humilhado e desmoralizado no evento, garantindo o direito do marido de continuar ensinando.
Outras testemunhas relataram um caso completamente diferente, que Wong Jack Man duelou com Bruce Lee durante algo por volta de vinte minutos. Não só isso, que ele em diversos momentos apenas marcou os golpes no oponente que teriam definido a luta, além de recusar-se a usar seus chutes pelo receio de ferir gravemente o adversário. Dá-lhe mais relatos divergentes por aí e faça-se a lenda.
Cá entre nós, se foi mesmo um passeio como a viúva afirmou, não parece muito lógico que logo depois ele tenha procurado desenvolver um estilo próprio. Outro detalhe que a desabona é que Wong Jack Man teve alunos ocidentais, começando com turmas exclusivamente de chineses apenas pela falta de divulgação fora do círculo. Enfim, em 1964 era mais fácil um caso entrar naquele terreno mítico que os fãs adoram e cada um publica e fala o que quiser sobre o fato. Os tempos de internet podem ter vários problemas, mas, pelo menos, é bem mais difícil criar factoides.
Uma premissa intragável
A Origem do Dragão apresenta Wong Jack Man como um monge Shaolin que chega a San Francisco auto exilado e procurando reencontrar-se na paz de sua arte. Sua chegada chama atenção do arrogante Bruce Lee, já estabelecido como professor e, na opinião do recém-chegado, ensinando um Kung Fu desprovido de sua verdadeira essência. Só que não é esse o motivo do confronto, algo justificado da pior maneira.
Steve, um dos alunos de Lee, aproxima-se do monge, aumentando o desconforto do aspirante a astro do cinema, que procura convencer o forasteiro a enfrentá-lo. A incrível subtrama de Steve é sua paixão por uma jovem chinesa e seu esforço em livrá-la das garras da máfia. Simples assim, Bruce Lee começa como uma espécie de vilão desta história, que, conforme avança, passa a bola do antagonismo para os gângsteres locais, que tentarão lucrar promovendo a luta que é a razão de ser desta produção capenga. Parece esdrúxulo? É pior…
Imagine um filme que se prestasse a contar um episódio marcante da vida de Pelé, com uma virada narrativa espetacular em que ele precisa salvar um amigo de um grupo de cartolas. Mais ou menos, é isso que encontramos aqui. Nem é preciso comentar sobre atuações ou precariedade dos arcos dramáticos, não é? Nosso Bruce Lee aprende sua lição do dia de uma hora para outra, assim como nós aprendemos que a máfia chinesa não curte muito armas de fogo. Já Wong Jack Man reencontra sua paz de uma forma bem discutível.
Nem as lutas prestam?
Infelizmente, aquilo que poderia render um mínimo de diversão é tão decepcionante quanto o resto. Toda parte técnica do filme é genérica como qualquer telefilme da década de 1980, com a edição e coreografia das lutas entregando algo absolutamente desprovido de alma. Em diversos momentos, a câmera não disfarça que um golpe passou mais longe do que o conveniente. Se o roteiro é incapaz de criar qualquer simpatia e torcida por um deles, a execução visual não consegue simular uma luta real. Quem vai se importar quando ninguém parece correr um perigo de verdade?
Por tudo isso, A Origem do Dragão não é apenas uma piada de mau gosto conceitualmente falando. O floreio em cima dos fatos nem seria o verdadeiro incômodo, caso ele não tentasse posar de fonte histórica com seus tradicionais letreiros no começo e no final (Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas padece do mesmo mal). O que chama atenção é que, no geral, é um filme comparável aos piores momentos de Steven Seagal, mas o inchado Lawman ainda garante algumas risadas involuntárias.
Depois dessa, por favor, deixem o Pequeno Dragão descansar!