A Garota Ocidental é sobre liberdade individual
Quase todos os romances da literatura clássica tem como tema o choque surgido entre a liberdade do indivíduo e a opressão proveniente das regras e dos valores compartilhados por um coletivo, este podendo ser a sociedade, a família ou qualquer grupo heterogêneo de pessoas. O que fazer quando os desejos de alguém são contrários aos dos outros? Onde se encontra forças para enfrentar essa diferença? E, uma vez encontrada, como se deve proceder? Atormentando literatos e filósofos há séculos, são essas as perguntas que o longa A Garota Ocidental: Entre o Coração e a Tradição (Noces) também busca responder.
Se passando na Europa, o filme conta a história da jovem paquistanesa Zahira Kazim (Lina El Arabi). Grávida depois de se relacionar com um homem de outra nacionalidade, ela é obrigada pela família a abortar. Todavia, esse não é o seu desejo. Agravando ainda mais a situação, o pai, Mansoor (Babak Karimi), a mãe, Yelda (Nina Kulkarni) e o irmão, Amir (Sébastien Houbani), exigem que ela se case o mais rápido possível. Para isso, pedem que selecione um entre três possíveis candidatos. Não aceitando nenhuma dessas imposições familiares, ela – como subtítulo brasileiro indica – terá de se decidir entre viver livremente ou se curvar às exigências da tradição religiosa da qual faz parte.
Tendo escrito e dirigido A Garota Ocidental: Entre o Coração e a Tradição, Stephan Streker se sai melhor como roteirista do que como diretor. Apesar de exibir destreza na direção de atores e na maneira com que ressalta a desumanidade dos médicos responsáveis pelo aborto (em certo momento, eles estão fora do quadro e nós ouvimos apenas as suas vozes, em outros, ou estão escondidos, ou, quando aparecem, estão desfocados), o cineasta, na construção visual do filme, mostra não ter muita personalidade, já que o seu estilo (embora não dê para afirmar que um sujeito com três longas na carreira possui uma assinatura, sempre é possível enxergar particularidades) é parecido com o de diretores contemporâneos, como Asghar Farhadi (a câmera tremendo e próxima dos atores é uma marca do diretor de O Apartamento). Além disso, há uma banalização completa do close up, uma vez que o uso indiscriminado desse recurso reduz consideravelmente o seu efeito dramático.
No entanto, como roteirista, o seu trabalho é primoroso, a começar pelo local escolhido como palco para o desenvolvimento da trama. Ao situar a história na Europa, ele não só introduziu o seu texto na tradição literária consistida de embates entre os valores individuais e aqueles de um coletivo, como também representou geograficamente o conflito interno da protagonista. Afinal de contas, mais do que indecisa sobre qual caminho deve seguir, ela está presa entre dois mundos: o Ocidental, que lhe dá mais liberdade e permite que faça escolhas de acordo com os seus interesses, e o muçulmano, que, representado pelo núcleo familiar, exige dela uma aceitação forçada de coisas que determinarão para sempre a sua vida.
A difícil tarefa de ser humano
Sendo assim, era essencial que Streker desse dimensões humanas a todos os personagens. Felizmente, é nessa região conflituosa que a caneta do roteirista encontra espaço para brilhar. Evitando qualquer tipo de maniqueísmo e enxergando humanidade em quase todos os lugares, ele nos mostra, com muita clareza, o interior da protagonista, e oferece vislumbres dos sentimentos que movem os outros personagens. Em relação a Zahira, pode se dizer que ela é uma rebelde, seja por influência ocidental, seja por uma predisposição natural. Porém, isso não se dá pelo simples prazer de contrariar, mas sim porque ela preza pela sua liberdade acima de tudo. A cena em que dança numa boate e depois anda de moto com um amigo é sintomática: os momentos em que pode ser livre são tão raros que nada resta senão vivê-los intensamente.
Já no que diz respeito aos demais personagens, chama atenção que, mesmo sem terem a razão, Streker nos faz olhá-los com uma certa compaixão, pois eles também são vítimas da visão de Mundo estreita que lhes foi ensinada. Para eles, a tradição religiosa que os rodeia é a única que existe e qualquer coisa fora desse círculo de experiência é considerada herética. Essa humanização também fica evidente em algumas cenas pontuais, como aquela que mostra Yelda beijando a filha enquanto esta dorme e outras nas quais vemos o medo sentido por todos de que a escolha de Zahira acabe por selar a morte de Mansoor, que sofre de um problema cardíaco. Até na própria construção conceitual dos personagens isso fica evidente, como, por exemplo, na de Amir, em cujos ombros recai a responsabilidade de impedir que a família desmorone. Por fim, é preciso destacar o ritmo estabelecido pelo texto. Mesmo contando uma história que se passa no interior dos personagens, a trama está sempre se movimentando, e novos conflitos surgem a cada momento.
Com um final devastador e uma atuação expressiva da bela e talentosa Lina El Arabi (ela sabe usar os seus grandes olhos para gerar empatia e transmitir os diferentes sentimentos da personagem), A Garota Ocidental: Entre o Coração e a Tradição é, assim como o recente Fátima, uma ótima oportunidade para nós, ocidentais, conhecermos um pouco mais sobre o pensamento islâmico. Numa época em que, direta ou indiretamente, convivemos diariamente com muçulmanos, saber mais sobre eles sempre será algo positivo. Mas, acima disso, o longa de Stephan Streker deve atuar como um poderoso libelo contra todos os tipos de opressão que tenham como vítima o indivíduo. Deem o nome que quiserem – cristianismo, islamismo, judaísmo etc. -, a partir do momento em que essas tradições cerceiam as liberdades mais básicas, é hora de nos afastarmos delas. Caso contrário, as consequências serão sempre trágicas.