Corra! trata levianamente de um assunto sério – e paga caro por isso
Eu me sinto pisando em ovos. É muito difícil para um homem branco, adulto e de classe média como eu abordar o tema do racismo. Muitos extremistas ideológicos diriam que sequer é meu papel. Que eu deveria me reduzir à minha ignorância, apenas aceitando as críticas que me são feitas indiretamente no longa Corra! (Get Out!), de Jordan Peele. Mas resignar-se diante de um tema como esse, assumindo como verdade uma apresentação unilateral de um problema, é aceitar o mesmo tipo de opressão onde nasce o próprio racismo. Então, por conta e risco, vamos seguir adiante.
O ótimo Daniel Kaluuya (de Sicario e do segundo episódio do primeiro ano de Black Mirror) é Chris Washington, um fotógrafo negro que vive em uma grande cidade. Possui um olhar único, ligeiramente melancólico e detalhista, que marca sua personalidade e sua arte. Ele namora a bela Rose Armitage (Allison Williams), que o convida para passar um fim de semana na imensa propriedade de sua família no interior.
Lá, ele conhece os pais, Dean e Missy (Bradley Whitford e Catherine Keener), e o irmão dela (Caleb Landry Jones). A apresentação da família tem recortes mais sutis, onde a crítica social pretendida por Peele é mais nítida e mais bem fundamentada. E alguns poucos minutos, Peele estabelece com clareza sobre o que o filme – vendido como um horror/suspense/thriller, dependendo da sua fonte – realmente se trata: uma crítica ao racismo “liberal”; os famosos “desconstruidões”.
Vamos aproveitar esse ponto, e deixar uma coisa bastante clara: racismo existe, é um problema seríssimo – moralmente, politicamente, socialmente, historicamente – e precisa ser combatido por qualquer sociedade que se pretenda ser civilizada. A igualdade de oportunidades e de tratamento ético, assim como o fim da violência – física e verbal – contra uma determinada raça, etnia, etc., não é algo que pode ser debatido – é uma premissa básica de qualquer sociedade intelectualmente honesta.
Nesse aspecto, o primeiro ato de Corra! é até interessante. A família Armitage é apresentada como um pastiche de brancos liberais que se sentem expostos como um nervo diante da marcha contra o racismo contemporâneo, da qual, em tese, seriam perpetradores – afinal, são brancos e ricos. Existe um esforço contínuo e evidente por parte de todos eles – incluindo Rose – para deixar claro para Chris que eles não são racistas. O que não é um problema em si, afinal, estamos falando de um filme, uma obra de arte, onde a interpretação é mais importante do que o fato em si.
A representação tragicômica dos Armitage em relação a Chris é a maneira de Peele expor uma das maiores dificuldades do mundo contemporâneo – as relações não entre brancos e negros, mas entre as culturas de brancos e negros. É um fato que séculos de segregação racial e distanciamento histórico e geográfico resultaram em brancos e negros que habitam o mesmo território, mas que não pertencem a uma mesma cultura.
Quando esses mundos voluntariamente colidem, como em Corra!, o resultado apresentado por Peele é até coerente: brancos se esforçando ao ponto da condescendência para garantir a um negro, visivelmente constrangido e até ligeiramente oprimido por essa ostensão, que eles não são racistas, como se deveria supor que seriam; enquanto Chris, calejado por uma vida de racismo liberal e microagressões, não sabe lidar naturalmente com eles.
Os “desconstruidões” parecem não entender que Chris reage daquela forma por ter vivido a construção de racismo em si próprio; ao passo que Chris parece também estar conformado, e não interessado em estabelecer esse tipo de diálogo. O sentimento de vergonha alheia criado por Peele até aqui é interessante, pois ele atinge quem deve atingir, da maneira como deve atingir – os Armitage se esforçam demais para se aproximarem de Chris, enquanto Chris se esforça pouco ou quase nada; muito menos do que um apontar de dedos, Peele reconstrói um quadro de heranças históricas de duas raças em breves momentos familiares.
Não obstante, o teto de vidro do filme fica ainda mais exposto quando se percebe que os dois empregados da propriedade Armitage são negros, e o tratamento a eles, ao contrário do dirigido a Chris, parece rudimentar. A construção conceitual de Corra! até aqui não é muito sutil, com seus símbolos sendo bastante óbvios, mas é eficiente – retrata uma realidade que nós sabemos que existe; um momento histórico de transição, onde muitas pessoas bem intencionadas agem de forma estúpida, simplesmente por não saberem como agir, reproduzindo velhos preconceitos de novas formas.
Conceito interessante, execução temerosa e preconceituosa
Se Corra!, de alguma forma, pudesse se encerrar aqui, ele seria realmente interessante e relevante. O problema é que, ao término do primeiro ato, Peele mergulha seu filme em um “lugar profundo” (você já vai entender a brincadeira) de analogias e metáforas. É onde realmente se perde, fazendo com que todo o seu argumento contra o racismo se volte contra si mesmo.
Missy, a mãe Armitage, é psiquiatra, e parece convencida de poder curar Chris do vício do cigarro através da sua especialidade – hipnose. Entretanto, a primeira sessão – forçada – entre Chris e Missy não termina tão bem, quando Missy aparentemente aprisiona Chris em uma condição psíquica chamada “Lugar Profundo”, e a percepção de Chris sobre o seu entorno entra em uma espiral crescente de paranoia e suspense.
A ideia era aprofundar a crítica social. O que Peele faz, no entanto, é um besteirol que parece querer ser imune ao conceito de “racismo reverso”. Peele apresenta um quadro de brancos que é tipicamente estereotipado – o resto dos coadjuvantes é igualmente branco, rico e alienado, interagindo com Chris de uma maneira que é obviamente forçada. E é aqui que o teto de vidro de Peele começa a estilhaçar – a crítica social ao racismo começa a se fundamentar, ela mesma, em uma determinada forma de racismo.
Aqui cabe outro esclarecimento. Entenda, amigo leitor, que “racismo reverso” é uma coisa que não existe; pelo simples motivo de “racismo”, enquanto conceito, ser indissociável de uma determinada raça, pois isso seria necessariamente uma contradição.
É óbvio que o racismo contra os negros possui um peso histórico, social e econômico que não existe contra os brancos, afinal, eles são responsáveis – historicamente – pela discriminação contra os primeiros, mas isso não implica que brancos não possam sofrer racismo. Até porque, atribuir o racismo entre seres humanos a uma premissa binária é ainda mais racista do que se pretenderia o conceito em si, já que a imensa maioria dos seres humanos na Terra não se identifica nem como brancos, nem como negros.
Incidentalmente, qualquer um com um mínimo de domínio de ciências humanas como sociologia e antropologia sabe que existe racismo mesmo entre aquilo que um observador externo consideraria como uma única etnia, já que aqueles que pertencem a ela não se consideram como tal.
Perceba, amigo leitor, como esse conceito é complexo, e não deveria ser tratado levianamente. O tema do racismo deveria ser abordado pelas ciências humanas; mas, aparentemente, a ignorância, a vaidade, ou simplesmente a raiva das pessoas que lidam com esse tema, parece fazer esquecer que existe um “ciências” antes de “humanas”. Ou seja, existem inúmeros fatos, evidências e circunstâncias – históricas e contemporâneas, particulares e gerais – que tornam o debate sobre questões sociais como o racismo muito mais complexo do que “textões” de Facebook deixam parecer.
Jordan Peele tinha em Corra! uma oportunidade de abordar esse tema de maneira mais sensível e sutil, observando que o racismo é uma porta que, como todas, se abre para dois lados; mas ele preferiu, seguindo sua formação como comediante de stand-up, fazer piada e chacota com os brancos – ou seja, homogeneizando de maneira discriminatória toda uma raça – posteriormente, no filme, tornando-os vilões unidimensionais de um pretenso filme de terror com inspirações de cinema B.
O problema no ponto de vista de Peele não chega a ser surpreendente; quase todo ser humano contemporâneo, em particular os millenials e agregados – a turma que adota uma luta politicamente correta simplesmente por ser rotulada e disseminada assim – parece não entender que existe uma contradição entre lutar pela igualdade exaltando as diferenças.
Pois ao término da sessão, fica difícil entender qual é o ponto – a “imensa” aclamação ao filme parece ter muito mais fatores externos do que inerentes a ele próprio; principalmente se levarmos em consideração os imensos e óbvios buracos de roteiro (a motivação para a captura e uso de Chris é, além de patética, incoerente, pois o amigo leitor mais atento perceberá que haveriam inúmeras outras maneiras de se atingir o mesmo objetivo).
O filme parece se alimentar – nesse aspecto, talvez até justificadamente – nos EUA pelo fim da era Obama, e pelo início do governo de um sociopata sem nenhuma capacidade intelectual de compreender – quanto mais lidar – com temas assim. Incidentalmente, corro o risco de queimar minha língua aqui apontando Trump como o estereótipo de racismo que justifica o combate a esse; mas o fato é que o racismo explícito de Trump não é o alvo de Peele. Esse é mais complexo, e o tropeço conceitual/narrativo do diretor só demonstra que mesmo as vítimas do racismo não necessariamente são apenas vítimas, mas potencialmente perpetuadores de outras formas do mesmo racismo.
Fora o completo desastre conceitual, existe também um problema de ritmo – do início, utilizando recursos clichê de filmes de terror e suspense, como cervos atravessando repentinamente até um ou dois jump scares, até o final, com gags baseadas também em estereótipos de indivíduos negros, o filme não tem fluidez. Os eventos vão simplesmente se sobrepondo, até que a “trama” se revela – e também onde já se esqueceu completamente a sutileza e a crítica social da coisa toda, com direito a algumas revelações absurdas e incoerentes, como o destino dos empregados negros da casa.
Um desserviço para o tema
Novamente, o problema não é o tema em si – muitos outros filmes, recentes e mais distantes, abordaram o tema do racismo da maneira mais artisticamente exuberante e conceitualmente precisa. Não obstante, é necessário o engajamento da arte e da sociedade para manter esse tema na superfície, sendo combatido até que ele chegue ao lugar onde já deveria estar – no lixo da história.
Mas Corra! é um passo para trás nesse processo. Se os apreciadores desse filme são os mesmos que consideram a correção política algo necessário para o progresso da sociedade, bem… É apenas mais uma contradição hipócrita para uma longa lista de pessoas que possuem muita opinião, mas pouco conhecimento. E que não entendem que as contradições nas suas inferências são mais prejudiciais que benéficas para o objetivo que pretendem.
A não ser que o objetivo dessas pessoas, como talvez possa ser o de Peele, seja simplesmente ofender. Fato é que temas polêmicos vendem. Quando colocados sob o véu da metáfora e da analogia, onde o espectador pode tirar as conclusões que quiser, vendem mais ainda, pois é mais fácil para o espectador projetar ali o que ele quer ver.
O problema é que metáforas e analogias não funcionam por conta própria. Elas precisam de fundamentação lógica, algo que dê sentido objetivo ao que querem ilustrar. Uma metáfora simplesmente por uma metáfora é mais ou menos como Corra! – vazia de conteúdo.