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Cães de Guerra – As engrenagens mal-feitas da guerra!

Cães de Guerra

No início dos anos 2000, o que acabou se provando o imenso erro que foi a Guerra do Iraque aconteceu, mudando completamente a geopolítica do mundo até aqui. E toda vez que algo muda em um nível macro, também muda em um nível micro. O que é uma maneira afrescalhada de dizer que, quando países mudam, seus cidadãos acabam mudando junto. Não é segredo nenhum que quase todo americano, principalmente os republicanos, tem uma forte ligação com a segunda emenda – aquela que é interpretada de uma forma que todo americano pode portar armas. Independentemente do que qualquer amigo leitor possa ter como opinião sobre o assunto, fato é que o contexto de uma nova guerra em grande escala, mais a ligação cultural que americanos tem com as suas armas, acaba eventualmente provocando anomalias. Essas anomalias podem envolver atiradores de escolas, à la Columbine, ou então os eventos envolvendo o novo filme de Milles Teller e Jonah Hill, Cães de Guerra (War Dogs).

O filme gira todo em torno de uma das inúmeras falhas de julgamento do governo Bush – ao ser processado sob acusação de monopólio e compartilhar informações privilegiadas, o governo americano decide tornar público todo edital de compra e venda de armamentos envolvendo o pentágono. A ideia era manter a iniciativa de autorregulação do livre mercado, dando oportunidade ao cidadão americano comum de competir contra as grandes empresas por contratos de armas. Mas, obviamente, como toda iniciativa de livre mercado, a coisa toda tinha inúmeras brechas, que continuava privilegiando as grandes empresas e objetivamente impedindo que um cidadão qualquer pudesse pegar um contrato para armar um exército inteiro, por exemplo. Doce ilusão. Porque quando se envolve muito dinheiro e livre iniciativa, sempre aparece alguém para provar que a coisa precisava ser MUITO melhor organizada antes de ser levada a público, sob o risco de coisas muito ruins acontecerem.

Cães de Guerra

No caso de Cães de Guerra, esse alguém espertalhão é Efraim Diveroli (Jonah Hill), um jovem judeu que enriquece rapidamente ao pegar inúmeros contratos, mas de pequeno porte. O que é insignificante para uma grande corporação de armas é uma fortuna para uma pessoa comum. Sob essa filosofia, Efraim consegue se mudar para Miami e abrir o seu próprio pequeno escritório para tocar esses contratos. No processo, reencontra seu amigo de infância, David Packouz (Miles Teller), que está num momento difícil da vida. Trabalhando em um subemprego e com um filho a caminho, David se vê sem muita opção senão aceitar a oferta de seu velho amigo. Sua resistência se dá por sua mulher, Iz, ser veemente contra armas. Essa oposição é driblada com algumas mentiras e David acaba descobrindo ser muito bom no que faz. Depois de um contrato milionário que leva os dois a atravessar Fallujah e o triângulo da morte no Iraque, eles decidem que é hora de expandir e crescer ainda mais. Aí entra Henry Girard (Bradley Cooper), um lendário comerciantes de armas. Ele se torna o facilitador para Efraim e David conseguirem o Contrato Afegão, o maior contrato já tornado público pelo Pentágono até então. Tudo fica cada vez melhor para dupla. Até começar a piorar.

O filme é alegadamente inspirado em fatos, baseado em um artigo da Rolling Stone, mas uma pesquisa rápida nos mostra que ele é pesadamente dramatizado e muitas liberdades artísticas são tomadas para se contar essa história. É fato que dois jovens realmente deram uma senhora engambelada no governo americano, e que o tal Contrato Afegão realmente existiu, mas o que a história tem de verídico termina por aí. O importante são as armas, e como estas associadas a pessoas que acreditam serem mais espertas do que realmente são geralmente terminam em problemas sérios.

Cães de Guerra

A primeira referência que nos vem à mente é O Senhor das Armas, um dos últimos bons filmes do artisticamente falecido Nicolas Cage, pois trata basicamente do mesmo tema – as idiossincrasias que envolvem o potencialmente mais lucrativo mercado do planeta: armas. Mas ao contrário da crítica em escala global que este faz, Cães de Guerra é muito mais voltado às trapalhadas do incompetente governo Bush e aos seus protagonistas, tendo um tom muito mais leve do que o filme de Cage. Temos algo aqui vendido como uma comédia, embora essa seja uma interpretação abrangente – ele garante algumas risadas, principalmente pelas personalidades de Efraim e David e as situações absurdas pelas quais ele passam – pois o tema geral do filme, principalmente o terceiro ato da trama, diluem bastante o efeito cômico.

Assim, não dá para saber ao certo até onde vão as intenções do diretor Todd Phillips. Egresso do sucesso Se Beber, Não Case (de onde trouxe Cooper), Phillips às vezes parece indeciso se faz uma comédia ou um thriller de ação, embora a montagem e a narrativa em geral não permitam que o filme seja prejudicado por isso. Na verdade, isso confere um tom bastante característico, e Phillips tem o cuidado de harmonizar a fotografia e a decupagem para pontuar muito bem a transição dos humores e dos temas do filme. Não que a própria divisão em capítulos já não ajudasse nesse sentido – a sequência de “Eu amo a América de Dick Cheney” é equilibradamente hilária e tensa – mas esse preciosismo do diretor evita que o filme pese demais para qualquer um dos lados, seja o da ação, seja o da comédia, ou do drama. Não seria exagero dizer que Cães de Guerra é o grande filme desse diretor até aqui.

Cães de Guerra

A maior parte do efeito cômico é garantido pelo Efraim de Jonah Hill. É cada vez mais difícil acreditar que o gordinho de Superbad se tornou um ator tão polivalente. Ele constrói um personagem histérico, na qual destila todo o seu dom para a comédia, mas não um absurdo – quando há a incidência de passagens mais dramáticas, o personagem ainda é crível. Efraim acaba servindo como um estereótipo de tudo o que há de errado com o conceito de livre mercado à americana, com sua gravidade potencializada pelo eticamente controverso mercado no qual está envolvido. À parte do seu contexto geral, Efraim também tem características – a risada é pessimamente bem apresentada – que tornam sua figura cômica, mas suas ações tensas.

Melhor para Miles Teller. O ator, que conheceu Phillips em Projeto X, tem uma carreira que apesar de curta, alterna alguns altos e baixos. Tem a questionável série Divergente, aí tem Whiplash. Teve o abominável Quarteto Fantástico, e agora tem Cães de Guerra. E perceba que eu coloquei esse último como um ponto alto, pois realmente é. O David Packouz de Teller, que serve como um contraponto da personalidade histriônica de Efraim, traz uma boa carga dramática no seu arco com sua parceira Iz, ao mesmo tempo em que sabe carregar os momentos tensos e cômicos, sendo responsável pela maior parte do filme. Começa a parecer óbvio que Teller é sim um bom ator – ele e seu agente só precisam prestar mais atenção aos roteiros colocados à sua frente.

Cães de Guerra

Falar sobre um tema como o mercado de armas, principalmente para o público americano, é sempre algo delicado, pois envolve muito mais sentimentos do que observação dos fatos. Mesmo o amigo leitor que ver o filme pode muito bem ter suas próprias opiniões sobre o assunto – eu certamente tenho a minha. Mas é curioso notar que, a despeito de ser a meca dos filmes de ação, onde heróis solitários armados até os dentes lutam pela “liberdade, justiça e o jeito americano”, quando Hollywood decide se debruçar e observar a questão do uso ou não de armas e o seu mercado, quase sempre o resultado é agridoce. Como em Cães de Guerra, onde a ideia de “mal necessário” paira perene durante todo o filme.

Mas aqui nós não pretendemos, assim como o filme também não, encerrar esse assunto. Afinal de contas, é algo que foge muito à realidade e à percepção da imensa maioria das pessoas comuns. Mas é inevitável, após assistir ao filme, pensar: agora nós temos uma ideia de quem são os Cães de Guerra, mas será que nós sabemos quem são seus donos?

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