Então, você lembra daquele Macbeth, de 2015? Aquele dirigido pelo Justin Kurzel e estrelado por Michael Fassbender como o protagonista? Neste caso, você deve se lembrar que, embora não tenha sido nenhum fenômeno, ou sequer tenha se aproximado das grandes adaptações shakespearianas para o cinema, foi um exercício estético interessante, apresentando uma versão particular da história que buscava se aproximar do público mais exigente por ação e aventura do que por uma narrativa bem trabalhada. Pois bem, Assassin’s Creed reúne uma parte da patota que desenvolveu esse filme, incluindo aí Marion Cotillard. Ah, e tem um pessoal do naipe de Jeremy Irons, Brendan Gleeson e Charlotte Rampling. E é claro que tudo deu monumentalmente errado.
Entra ano, sai ano, Hollywood parece se esforçar para não entender algo muito simples: cinema não é videogame. E se o amigo acha essa afirmação óbvia e desnecessária, talvez lhe falte observar essa lógica com mais atenção – são duas mídias diferentes. Elas se relacionam com o espectador de forma muito distinta, e suas experiências de imersão não podem ser emuladas. Os videogames, de uma década para cá, aprenderam a desenvolver seu próprio potencial artístico, encontrando uma maneira de oferecer uma experiência narrativa dentro de seus próprios termos, assim como o cinema já o faz a um século.
Entretanto, sempre que se tenta cruzar a fronteira entre ambos, acaba dando errado. Toda vez que um jogo vira filme, nós temos uma colossal porcaria. Toda vez que um filme vira jogo, idem. Só que aqui, nós temos uma diferença em termos de proporção e objetivo: filme que vira jogo é sempre um caça-níquel, um item a mais de merchandising para fazer a alegria dos fãs. Jogo que vira filme, normalmente, é um investimento grande por parte do estúdio, que espera um retorno à altura. E aí reside um grande mistério, porque, dado o histórico de adaptações de games para o cinema, apostar nisso é como ir à uma corrida para apostar no cavalo paraplégico e Assassin’s Creed só reforça esse estigma.
A trama conta a história de Carl Lynch (Fassbender), um homem que encontramos sendo executado por assassinato. Então, nós descobrimos tratar-se de um engodo, com Lynch sendo reanimado logo em seguida por Sofia, uma estudiosa de ciência genética que pretende, através de sua pesquisa, erradicar o gene da violência nos seres humanos. Para isso, ela precisa encontrar um artefato chamado Maçã do Éden, que contém o código genético do livre-arbítrio dos seres humanos, que seria o responsável pelo pecado original. Lynch foi escolhido por ser o descendente direto de Aguilar, um membro do Credo dos Assassinos, e relatado como o último homem a saber a localização do artefato. Assim, Sofia usará um equipamento chamado Animus para realizar tal tarefa, mandando a mente de Lynch para o passado, de encontro a mente de seu ancestral, para assim localizar a Maçã.
Sim, o roteiro parece esdrúxulo. Parece algo que Dan Brown escreveria e todos nós sabemos que isso definitivamente não é um elogio. Mas isso é eminentemente culpa de quem adaptou o jogo para a tela – Michael Lesslie, Adam Cooper e Bill Collage – e não do jogo em si. Porque, novamente, as mídias se propõem a experiências completamente distintas. Quando se está na pele de Ezio nos jogos de videogame, você tem um conjunto de perspectivas e de desenvolvimento de personagem que tornam Assassin’s Creed um dos jogos mais interessantes da última década. Entretanto, quando isso é rigorosamente transposto para a tela, o que nós temos é uma ação desenfreada, bagunçada e que torna o espectador completamente alheio, reduzindo-o ao mero papel de testemunha de ninjas renascentistas e explosões. Como se Michael Bay estivesse dirigindo um texto de Dan Brown. E agora sim, eu me superei em qualquer insulto que eu poderia ter feito.
Nós voltamos àquela velha tecla em que sempre batemos por aqui: efeitos especiais e talentos individuais não salvam uma porcaria de roteiro. A situação que Kurzel, Fassbender, Cotillard e Irons passam aqui é análoga ao colossal monte de estrume que foi o Warcraft – de Duncan Jones – no ano passado. Por total incompreensão do material que estava diante deles, todos parecem estar no automático e o filme simplesmente acontece; querendo dizer, ele sai do nada, chega em lugar nenhum, e o que tem no meio não dá para entender. E perceba – como já dito antes – o time envolvido nesse negócio. Colocar esse elenco elenco para trabalhar em um filme desta estirpe é como comprar um terno Armani para colocar no seu cachorro vira-lata.
Mesmo Fassbender, que abraçou essa criança como sendo sua, neste momento já deve estar arrependido. Tudo no filme, em decorrência dessa incompreensão, falha. As atuações são inexpressivas – e Jeremy Irons parece estar fazendo força para esquecermos que ele é um tremendo ator. A fotografia é bagunçada e, ao tentar pontuar visualmente a transição entre os pontos temporais, só deixaa tudo mais confuso ao escolher cores chapadas que deixam tudo muito escuro ou tudo muito claro.
O roteiro, além de não fornecer estrutura nenhuma para o filme, ainda rende diálogos antológicos, dignos de uma sala cheia de pessoas esquizofrênicas, onde cada um muda suas atitudes de uma hora para outra, sem nenhuma justificativa, citando Oppenheimer pelo caminho para tentar fazer tudo parecer mais “épico”. E o pobre Kurzel, no meio desse turbilhão, fica sem saber o que fazer. E de fato, não faz nada. A direção do filme se resume a uma colagem de cenas de ação sem foco ou perspectiva e diálogos constrangedores, com leves pitadas de Fassbender sem camisa.
Portanto, se já era quase impossível tornar um roteiro que é basicamente um videoclipe de YouTube sobre parkour na Renascença em algo que preste, o erro cabal de adaptar literalmente a história do jogo para o cinema coloca uma pá de cal sobre as cabeças encapuzadas de Aguilar e seus companheiros. O filme deixa em aberto um gancho para uma continuação (o filme termina em lugar nenhum, lembra?), mas vamos torcer ardorosamente para que isso não aconteça. Se eu tiver que escolher entre ser morto por um assassino, ser incendiado em uma fogueira da Inquisição ou ver outro Assassin’s Creed, eu ficaria em dúvida sobre qual faca ou qual tipo de madeira eu preferiria que usassem em mim…