Clássico de Ettore Scola, Um Dia Muito Especial continua atual e emocionante
O duo italiano Marcello Mastroianni e Sophia Loren é inesquecível para a história da Sétima Arte, não importando quem está por trás das câmeras guiando suas interpretações. No longa Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare,1977), a energia que os entrelaça é mágica, fervorosa e completamente alcoólica. Depois de estrelarem juntos comédias românticas como Ontem, Hoje e Amanhã (1963) e Matrimônio à italiana (1964), ambos do diretor Vittorio De Sica, o casal mergulha em personas solitárias e angustiadas em meio ao regime fascista de Benito Mussolini, na década de 1930.
Dirigido pelo mestre Ettore Scola, Um Dia Muito Especial começa com imagens de arquivo da visita de Hitler à Itália, ocorrida em 1938. Algo que simbolizava claramente para a população italiana o firmamento do pacto Eixo Roma-Berlim, estabelecido em 1936 de maneira festiva, com passeatas e discursos das lideranças políticas de cada país. Em seguida, temos um corte para uma tomada aérea sobre uma bandeira nazista e um cortiço em algum bairro romano, com toques neorrealistas. É quando um lento travelling adentra pela janela da casa da família Taberi, onde Antonietta (Sophia Loren) está preparando o café, ao mesmo tempo que acorda seus seis filhos um por um, até chegar ao marido. Tudo isso em um elegante plano-sequência. Após o café todos, se dirigem para a passeata fascista, enquanto Antonietta segue com os trabalhos domésticos.
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A exuberante Sophia Loren é transformada, com recursos de maquiagem e figurino, em uma dona de casa de olhar cansado e precocemente envelhecida. Antonietta vive presa, chegando a aparecer, literalmente, entre grades em uma das cenas. É o modelo de mulher submissa, tratada como empregada pelo marido e cujo cotidiano se resume aos afazeres domésticos. Mas eis que surge o acontecimento que vai mudar tudo. O pássaro de estimação da família foge da gaiola e voa em direção ao parapeito da janela de uma casa vizinha. É na busca por ele que Antonietta conhece Gabriele (Marcello Mastroianni), um ex-locutor de rádio que vive solitário em uma casa emprestada por um amigo.
“Um dia muito especial” foi o nome dado pela imprensa italiana ao encontro entre os dois líderes fascistas. Mas no filme de Scola, a data estabelece uma verdadeira ode ao amor em um período marcado por abomináveis ideologias que incitavam a violência, o ódio e a destruição. O filme é, além de um romance, uma crítica política ao regime fascista de Mussolini. Assim como a maioria das famílias italianas daquela época, os Taberi adorava a imagem de Mussolini e os Camisas Negras, agindo como se fossem rebanhos guiados (familiar, não?). A própria Antonietta coleciona um álbum com fotografias do líder fascista e quando é indagada por Gabriele sobre os discursos machistas dele, diz que “não se pode evitar a naturalidade patriarcal”. Isso mostra como Antonietta foi condicionada socialmente a esperar certas atitudes masculinas desprezíveis.
No momento em que estão no terraço Antonietta se entrega aos braços de Gabriele e espera o comportamento masculino habitual. A revelação da homossexualidade de seu mais novo amigo vai levar a dona de casa por um caminho de autodescoberta e reflexão sobre valores ideológicos que até então acreditava firmemente. Já Gabriele, ao perceber que seu mundo vazio é preenchido pelo carinho e o amor ao conhecer sua vizinha naquela tarde incomum, também vai tomar decisões importantes. As rosas vermelhas na janela de Antonietta em direção a casa de Gabriele, provocada por um efeito de profundidade de campo, é um forte elemento visual sobre a relação entre os dois.
Sons especiais
O som tem um papel importante em Um Dia Especial. Durante todas as conversas, é perceptível ao fundo o som da passeata, narrada por um locutor de rádio. Esse elemento sonoro não é percebido pelos personagens, já que o verdadeiro “dia especial” não está lá fora e sim na troca que ocorre entre Antonietta e Gabriele entre um café e outro.
Com a aproximação do fim da passeata, Antonietta precisa voltar para casa e Gabriele arruma as malas para deixar a casa do amigo. O fascismo os separa, é o abismo entre os dois personagens. Uma cena interessante, onde Gabriele prepara uma omelete enquanto Antonietta está encostada na porta da cozinha, ambos estão em lados opostos do plano, e um sobretudo com um chapéu separa-os. São os mesmos elementos das vestes dos agentes fascistas que levam Gabriele embora no epílogo do filme.
Um Dia Muito Especial é apaixonante, sensível e ao mesmo tempo angustiante, em especial o momento em que Antonietta vê Gabriele sendo levado por agentes, sabendo que nunca mais o verá e que aquela tarde maravilhosa que passaram juntos é a única lembrança que terá dele. Parada ali na janela, enquanto lacrimeja e em seguida caminha em direção ao quarto, ficando emoldurada sob a luz do ambiente, enquanto se veste para dormir (revelando assim o retorno para a vida habitual) Sophia Loren protagoniza, para este que vos escreve, uma das sequências mais tristes do cinema italiano.