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Mãe! – Uma leitura psicológica da alegoria de Aronofsky!

Buscando uma camada mais profunda de significado em Mãe!

A não ser que você tenha se ausentado da internet ou fugido para regiões selvagens nas últimas semanas, deve ter ouvido falar qualquer coisa que seja sobre Mãe!. O novo filme de Darren Aronofsky segue dividindo opiniões mundo afora. Mesmo aqui, a crítica publicada na semana de lançamento foi bem desfavorável a esse trabalho. No entanto, também soltamos um artigo que se propôs a analisar os arquétipos inseridos na trama.

significado mãe

Espero que já tenha assistido, pois não há como aprofundar qualquer discussão sobre ele sem entregar quase TUDO que é visto em sua duração. Pois bem, qualquer texto sobre o filme se debruça em um aspecto particular, que é sua relação com o Velho e Novo Testamento, assim como o artigo citado acima se aprofunda nesta leitura. O casal vivido por Javier Bardem e Jennifer Lawrence configura representações da divindade judaico-cristã e da Mãe Natureza, usando um termo mais direto.

Não demora para que êmulos de Adão, Eva, Caim e Abel também se apresentem, criando uma narrativa pessimista sobre a essência corrompida do Homem, a vaidade narcisista de Deus e suas consequências. A questão religiosa é evidente, o que provavelmente irrita muita gente. É bom ressaltar que, por “irritar”, não me refiro a quem simplesmente não gostou do filme e fundamenta isso dentro de um critério justo. Fora isso, é claro que existe quem o interprete como um ataque às bases de suas crenças, mas aqueles que debocham abertamente do que é visto na tela, desprezando qualquer reflexão mais profunda, podem ter outros motivos. Inconscientes, inclusive.

Então, que tal procurarmos em Mãe! seus aspectos menos evidentes, mas nem por isso menos contundentes ou perturbadores? Vamos tirar um pouco os holofotes da esfera divina e nos concentrar no Homem, no interior de cada um de nós, fazendo uma leitura junguiana mais do que necessária para os tempos extremistas que vivemos.

Não existe Deus senão o Homem

A frase acima, de Aleister Crowley, é perfeita para o caso. Com a enxurrada de análises bíblicas, já temos material suficiente por aí para virar essa ideia ao avesso e complementá-la ao mesmo tempo. Tomando todas essas referências arquetípicas diretas que o filme traz, vamos assumir que os mitos nada mais são do que veículos dos arquétipos. Simplificando, esses paradigmas mentais do inconsciente coletivo antigo precisavam de uma manifestação sistematizada, o que deu origem às diversas mitologias, que, não por acaso, possuem diversas similaridades.

Portanto, a mitologia revisitada por Aronofsky em Mãe! também é algo que habita o interior de cada um de nós, independente da crença individual, ou ausência dela. Esse viés possibilita uma abordagem muito mais íntima do filme, inclusive rebatendo as descabidas acusações de machismo e misoginia feitas até aqui. A visão que proponho a partir de agora é que a alegoria não se limita ao caminho do Gênesis ao Apocalipse, como também pode ser percebida como uma representação da psique de qualquer homem.

Se entendermos o personagem de Javier Bardem como o Masculino interno (Animus) e a de Jennifer Lawrence como seu oposto Feminino (Anima), a linha de raciocínio é natural. Segundo Jung, os dois componentes habitam em todos os seres humanos e o desequilíbrio entre eles pode ser a raiz de alguns problemas do indivíduo, passando longe de questões diretamente ligadas à sexualidade em si.

Assim, o que é visto na tela pode ser o interior de um homem qualquer. Alguém cujo Animus não está em sintonia com sua Anima e a suprime. Inevitável que ele projetará essa situação interior para o exterior, já que criamos (verbo mais que adequado aqui) nosso próprio mundo a partir do que carregamos na psique. Podemos imaginar um relacionamento comum similar, onde alguém é indiferente à sua parceira em um relacionamento destrutivo.

Partindo daí, o Ego, a imagem que criamos como defesa perante o mundo e que costuma nos enganar, está descontrolado. Podemos facilmente tomar como metáfora desse Ego o comportamento do personagem, cuja inspiração (atributo da Anima) é ignorada até certo momento. Quando finalmente cede a ela, a paz logo é destruída pela embriaguez na devoção de seu séquito fanático. Conforme avança intoxicado por essa situação, mais a Anima é negligenciada.

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A jornada do Feminino

Seguindo a personagem de Jennifer Lawrence como uma personificação da Anima, as peças continuam a encaixar-se. Esse arquétipo simboliza a experiência do Homem com a Mulher. Quando bem desenvolvido, traz a inspiração (tão procurada na primeira metade do filme) e a intuição. O caso contrário é a apatia, condição análoga à figura masculina do filme até determinado ponto.

A Anima positiva é um guia para o Homem , sendo pertinente a apresentação de seus quatro estágios na análise do filme.

  1. Eva – (O conceito aqui não se liga à personagem de Michelle Pfeiffer, já que seguimos a terminologia Junguiana. A Eva do filme será abordada em outro momento) Esse estágio inicial é o instinto sexual e biológico.
  2. Helena de Tróia – Também contém elementos sexuais, mas está em um nível mais ligado à inspiração. Uma musa, falando mais diretamente.
  3. Virgem Maria – É a expressão maior do Amor e da devoção, com a associação evidente à maternidade.
  4. Sofia – A sabedoria além da santidade.

Recapitulando  os passos da narrativa de Aronofsky, Mãe! começa com o aspecto de Eva ignorado dentro da casa, que nos serve como alegoria do ambiente psíquico. Haverá uma ruptura nesta apatia após a crise, que percorre os estágios 1 e 2. O casal se entrega ao sexo intenso, culminando na inspiração, mas isso é tão abrupto que o Ego não tem condições de assimilar e amadurecer. A relação continua problemática, apesar de chegar, de uma forma muito acidentada, no terceiro nível.

Então, nossa Mâe encarna literalmente a Virgem Maria. Isso também não é o bastante para o Ego Masculino, que não é capaz de entender essa jornada e, por isso, a Anima não chega a atingir seu último estágio. O colapso é inevitável.

Agora voltando à Eva de Michelle Pfeiffer, ela nos complementa nesta história com outro aspecto de maternidade ligado a uma Anima problemática. Em certo momento, o diálogo nos revela por meio de seu Adão, vivido por Ed Harris, que ela mima demais um dos filhos. A Mãe Fálica, conceito que Aronofsky já havia mostrado no ótimo Cisne Negro, dá as caras por aqui através dela. Isso clarifica o atrito entre ela e a personagem de Jennifer Lawrence. Esta Eva agressiva se contrapõe à representação do arquétipo da Boa Mãe.

Este e outros assuntos relacionados á psicologia analítica podem ser pesquisados no blog da analista Hellen Reis Mourão, Café com Jung.

O ciclo se repetindo

Se alguém tão imaturo e tão desordenado psiquicamente, dominado pelo Ego, está fadado a relacionamentos sem futuro, já que projeta essa confusão no exterior, existem dois caminhos. Um é a busca pelo auto-conhecimento e o reconhecimento desses elementos, admitindo a responsabilidade por seus atos. O outro você já sabe. Bem provável que conheça alguém que não dá certo com nenhuma outra pessoa, embora continue tentando.

Evidentemente, se não existir o questionamento sobre sua própria responsabilidade no processo, o comportamento não mudará. Logo, o resultado sempre será essencialmente o mesmo, exatamente o que sabemos que acontecerá com esse Deus/Homem visto em Mãe!. Atitude demasiadamente humana de alguém preso em sua própria visão egoísta. A falta de cuidado com seu Feminino interno cria uma relação de indiferença com o Feminino literal externo. Óbvio, redundando em atitudes machistas em algum momento.

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A mensagem que podemos apreender em Mãe! é que existe a necessidade do Homem olhar para dentro de si, resolvendo inúmeros conflitos a partir dali e quebrando certos paradigmas. O machismo seria apenas um desses, mas me parece o mais evidente nesta linha de raciocínio. Neste ponto, é necessário também justificar a opção de Aronofsky pela adoção desta metáfora específica. Pode parecer que não faria diferença se outra mitologia, além da bíblica, fosse utilizada para compor essa história. Nisto também encontro argumentos a favor do filme.

Com todo respeito às crenças de qualquer um, não é exagero dizer que o arcabouço conceitual judaico-cristão já foi usado para validar atitudes muito questionáveis ao longo da História. Independente de sua mensagem positiva, distorcida até hoje em nome de quaisquer interesses, historicamente existe a supressão de elementos femininos no conceito geral de divindade. A cultura anglo-saxônica é o melhor exemplo disso, exacerbando vários aspectos masculinos no inconsciente coletivo. Machismo e misoginia são duas consequências naturais disso em uma massa pouco afeita ao ato de pensar.

Divino X Mundano

Por tudo isso, Mâe! é um filme que não se restringe à sua associação mais direta e óbvia. As inúmeras análises dentro desta esfera são muito válidas, porém, ao olhar tanto para cima corremos um grande risco. O filme nos faz um convite implícito que olhemos também para dentro de nós. O incômodo gerado em algumas pessoas, incidindo muitas vezes no escárnio, pode servir para mascarar verdades inconvenientes.

É pedir demais, mas seria bom que cada uma dessas pessoas que riram, ou que o odiaram violentamente, se disponibilizassem a procurar em si mesmos traços da divindade encarnada por Javier Bardem. Poderiam encontrar aí não só a origem deste incômodo, como também um caminho melhor para se relacionarem com o Mundo.

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