Os acertos e erros da carreira de David Lynch
Cineasta, músico, escritor, quadrinista, pintor e escultor, David Lynch é um artista de muitas facetas. Dono de uma imaginação fértil e peculiar, ele já deixou a sua marca através das mais diversas formas artísticas. Porém, foi no campo do Cinema que o seu nome surgiu e se consolidou. Em razão disso e da estreia, na próxima quinta-feira (15/06), de David Lynch: A Vida de um Artista, documentário sobre o seu trabalho – além, é claro, do retorno majestoso de Twin Peaks –, fizemos um ranking de todos os seus longas metragens. Portanto, não há momento mais propício do que o atual para embarcar nesta viagem pela mente de um dos artistas mais genuínos dos últimos anos.
Confira!
10 – Duna (Idem, 1984)
Quando Dino De Laurentiis contratou David Lynch para comandar a adaptação aos cinemas da reverenciada saga literária do escritor Frank Herbert, não dava para afirmar que a sua escolha havia sido equivocada. Ninguém apostaria também em Alejandro Jodorowsky, porém, se o o filme do cineasta chileno tivesse sido realizado, talvez tivéssemos uma obra-prima (como o Formiga Na Tela sobre o assunto deixa claro). Portanto, era um aposta compreensível do famoso produtor italiano.
Infelizmente, o resultado acabou se mostrando desastroso. Além de não ter tido controle sobre o corte final, Lynch mostrou não ter a mínima intimidade com o material. O filme não possui atmosfera, os efeitos especiais são precários e a história é confusa. Um naufrágio completo. Se serve de consolo, foi na pré-produção de Duna que o diretor conheceu o ator Kyle Maclachlan, que se tornou seu amigo e alter ego cinematográfico.
09 – Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk With Me, 1992)
Ao passo que a primeira temporada de Twin Peaks foi um sucesso incontestável, a segunda fracassou miseravelmente, a ponto de o último episódio do programa ter terminado com um cliffhanger para uma terceira temporada que não iria acontecer (a série retornou somente agora, 26 anos depois). Foi por isso que, no momento em que David Lynch afirmou, em 1992, que realizaria um longa de Twin Peaks, a expectativa por respostas era altíssima.
No entanto, a decepção foi grande quando as pessoas constataram que o filme não continuava a partir do ponto em que a série tinha acabado. Pelo contrário, voltava no tempo para contar os últimos dias de vida de Laura Palmer, a garota cujo assassinato havia iniciado tudo. Além disso, a mudança de tom (saiu o estilo soap opera e, no lugar, entrou uma atmosfera muito mais sombria) e a história, que não se sustentava como uma obra individual (quem desconhecia o seriado não entendia nada), também contribuíram para o fracasso do filme. Hoje em dia, com o retorno de Twin Peaks, as intenções de David Lynch no longa estão mais claras. Porém, não é o suficiente para afirmar que Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer é um projeto bem sucedido.
Já viu o Formiga Na Tela sobre o famoso seriado?
08 – Coração Selvagem (Wild At Heart, 1990)
Coração Selvagem é uma mistura de várias paixões de Lynch: os road movies, as estradas norte americanas, o rock n’ roll dos anos 1950 – com uma atenção especial para Elvis Presley -, O Mágico de Oz e as tramas policiais. Tudo, obviamente, embalado por uma narrativa lisérgica e protagonizada por personagens cartunescos e deliciosamente estranhos.
No entanto, apesar de ser divertido e conter ótimas performances do elenco (Willem Dafoe rouba a cena como o insano Bobby Peru, e Nicolas Cage tem uma de suas melhores atuações), Coração Selvagem é um filme vazio. A estilização e a caracterização exagerada dos personagens são elementos prazerosos de ser acompanhados, porém, ao término da sessão, fica a insatisfatória sensação de ter feito uma viagem que não chegou a lugar algum. Numa filmografia em que vários filmes ressoam emocionalmente no espectador, este longa de 1990 é surpreendentemente estéril.
07 – Eraserhead (Idem, 1979)
Primeiro longa metragem de Lynch, Eraserhead é o típico debute de um diretor talentoso, porém, inexperiente. Ao mesmo tempo que possui um charme único e revela o potencial de um novo cineasta, contém erros comuns de diretores de primeira viagem, como sequências desnecessárias e exageros estilísticos. No entanto, o saldo final é muito mais positivo do que negativo.
Uma espécie de auto purificação (uma das intenções de Lynch ao realizar o filme era passar a limpo a sua primeira experiência como pai) e filmado ao longo de vários anos (o cineasta brinca com o fato de que uma cena começou a ser filmada na década de 1970 e só foi finalizada em 1979), o longa já exibe algumas das principais características do seu diretor: ritmo compassado e enervante, design e atmosfera sufocantes, passagens oníricas, simbolismo e contrastes entre o belo e o grotesco. É um filme imperfeito, mas serve para mostrar como Lynch sabia desde o começo o tipo de artista que desejava ser. Uma curiosidade: Stanley Kubrick costumava dizer que Eraserhead era o seu filme predileto.
06 – Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006)
Último longa do diretor (até o momento), Império dos Sonhos começou de uma maneira pouco ambiciosa. Embora tenha três horas de duração e uma série de experimentações com iluminação e câmeras digitais (foi aqui que Lynch abandonou a película e se apaixonou pelo digital), o filme deu os seus primeiros passos através de uma única cena (a que mostra um sujeito interrogando a personagem vivida pela atriz Laura Dern), intencionada, originalmente, para ser exibida no site do próprio diretor.
Foi somente depois disso, quando, aos poucos, Lynch começou a imaginar duas histórias paralelas – uma que se passava na Polônia e envolvia uma garota de programa, e outra que se desenrolava em Los Angeles e versava sobre a vida de uma atriz – que o longa começou a se desenhar. Sem sombra de dúvida, Império dos Sonhos é o filme mais inacessível do diretor. Até futuras revisões não são suficientes para compreender a totalidade dos símbolos e de algumas sequências. Para piorar, boa parte da história parece não fazer sentido. No entanto, é impossível desgrudar os olhos da tela. Poucos filmes são capazes de recriar a experiência da hipnose tanto quanto esse. Assustadora, aterrorizante e irresistível, a experiência proporcionada pelo longa é inigualável!
05 – A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997)
Primeiro longa de uma trilogia centrada na cidade de Los Angeles – os outros dois são Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos -, A Estrada Perdida também é um dos filmes mais radicais do diretor. E olha que dizer isso sobre um diretor cujo estilo é caracterizado pela estranheza e cuja filmografia é constituída de vários filmes subversivos (para dizer o mínimo) não é pouca coisa!
Até o seu ano de lançamento, aqueles que acompanhavam o trabalho de Lynch já sabiam do seu estilo transgressor. Contudo, até mesmo filmes como Eraserhead e Coração Selvagem não conseguiriam preparar o espectador para as experiências que o diretor iria fazer com a narrativa e linguagem cinematográfica em A Estrada Perdida. Inspirada no julgamento de O. J. Simpson, a trama, durante o primeiro ato, acompanha a crise matrimonial dos personagens interpretados por Bill Pullman e Patricia Arquette. No entanto, a partir de um certo momento, essa história é abandonada e uma outra completamente diferente entra no lugar, deixando o espectador aflito e desnorteado. O porquê de Lynch ter feito isso é uma surpresa que somente os minutos finais revelarão.
04 – O Homem Elefante (The Elephant Man, 1980)
Mel Brooks na produção, David Lynch na cadeira de diretor e uma história sobre um homem cuja deformação física fez com que se tornasse uma figura estranha na sociedade: essa junção de nomes e trama só poderia resultar numa sátira bizarra, certo? Errado. Contrariando todas as expectativas, O Homem Elefante é um drama devastador sobre a maldade humana, filmado no estilo de Cinema clássico de Hollywood.
Amparado pela magistral e contrastada fotografia em preto e branco de Freddie Francis, Lynch se apropriou da comovente história de John Merrick não só para realizar uma ode cinematográfica ao Expressionismo Alemão e os filmes da Universal da década de 1930, como também para mostrar que o verdadeiro monstro não era Merrick, mas nós mesmos. Assim como o seu protagonista, O Homem Elefante é exótico, único e apaixonante.
03 – História Real (The Straight Story, 1999)
É impressionante como Lynch nunca deixa de surpreender. Depois de lançar A Estrada Perdida – até então, o filme mais experimental do diretor -, o público estava esperando que o seu próximo longa extrapolasse ainda mais as subversões vistas na obra de 1997. No entanto, se há algo que Lynch provou reiteradas vezes é que as suas escolhas nunca são óbvias ou possíveis de serem antecipadas. Portanto, após um projeto experimental, que outra maneira de surpreender senão na forma de um filme “convencional”?
Para aumentar ainda mais o choque, essa escolha – que está refletida no próprio título do filme (em inglês, “Straight”, que também é o sobrenome no protagonista, significa “reto, linear, direto”) -, terminou por se transformar num dos maiores acertos na carreira do diretor. Inspirada em um história real (não é um trocadilho), as andanças de Alvin Straight pelo interior dos Estados Unidos se tornaram, nas mãos de Lynch, um mergulho profundo nos valores culturais do país e um conto moral de efeitos arrebatadores. Por fim, não há como falar deste filme e não mencionar a trilha sonora de Angelo Badalementi. Sem ela, a experiência não seria a mesma.
02 – Veludo Azul (Blue Velvet, 1986)
Com uma atmosfera neo noir, Veludo Azul, em sua essência, narra o momento exato em que um jovem abandona a idealização típica da adolescência e adentra na brutalidade característica da vida adulta. E, como não poderia deixar de ser, o elemento catalisador dessa mudança é o Mundo, com todo o horror e a beleza que deste fazem parte.
Simbolizada em duas sequências genias – a primeira é um close que contrasta a paz do subúrbio com a feiura dos besouros que vivem debaixo da terra, e a segunda é um zoom in no fundo de uma orelha decepada – , essa transição na vida do protagonista se dá tendo como fio condutor uma trama de detetive folhetinesca e aparentemente banal, mas que esconde, por trás de uma cortina de normalidade, os impulsos sexuais mais diabólicos da humanidade, como o voyeurismo, a misoginia e o estupro. Com momentos poderosamente emotivos (a cena em que a personagem de Laura Dern fala sobre o seu sonho é de partir o coração) e um final ambíguo, Veludo Azul é um filme perfeito.
O filme também já foi discutido num Formiga Na Tela.
01 – Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001)
Pretendido originalmente como uma série de televisão, Cidade dos Sonhos se transformou em um longa depois que o piloto do seriado foi recusado por emissoras de televisão. Porém, nem preciso dizer que quem saiu perdendo foram elas. Como todo grande artista, Lynch se reergueu e fez das cinzas de seu projeto malogrado a maior obra-prima de sua carreira.
Seguindo os passos de Vincente Minnelli e Robert Altman, o diretor realizou uma completa imersão no coração da indústria hollywoodiana e, do seu profundo mergulho, ergueu um espelho no qual refletem o sucesso e o fracasso que podem acompanhar a trajetória de todos aqueles que enxergam nas promessas guardadas pela cidade dos anjos a realização satisfatória de todos os seus sonhos. No filme, tudo está polarizado: a luz e a escuridão, a loira e a morena, o som e o silêncio, a realidade e a ilusão, o sonho e o pesadelo. Refletindo a sua temática, a própria narrativa se divide em dois momentos fundamentais. De as todas obras cinematográficas dirigidas por Lynch, nenhuma toca tão fundo a alma e natureza humanas tanto quanto Cidade dos Sonhos.
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