Apesar de pouco lembrado, Samuel Fuller inspirou muitos diretores!
Todo admirador do cinema carrega na memória o nome daquele(s) cineasta(s) do qual ouviu falar e achou interessante, mas que por algum motivo ainda não conferiu. Samuel Fuller provavelmente entra nessa categoria para muita gente. Não chega a ser um diretor obscuro, pois influenciou diversos famosos, como Scorsese e Spielberg, que admitem abertamente essa relação. Falecido em 1997, volta e meia seu nome surge em algum comentário ou entrevista na mídia especializada, sempre destacando sua contribuição ao cinema e o quanto sua obra ainda segue provocativa e relevante.
Fuller foi um cineasta que levou suas experiências como veterano da Segunda Guerra e jornalista às suas narrativas. Como roteirista de seus próprios filmes, dialogava diretamente com o apelo sensacionalista dos tabloides e seguia à margem do sistema hollywoodiano, retratando personagens párias envolvidos em situações dramáticas e urgentes. Passou por diversos gêneros mantendo sua marca e embora tenha feito outros filmes de guerra, Agonia e Glória, de 1980, permanece como o mais conhecido e aquele que incorpora melhor a reflexão do diretor; Na guerra, o único heroísmo é sobreviver. Da vivência como soldado de infantaria, servindo na lendária Big Red One, surge o episódio em que Samuel Fuller, numa situação inesperada, acaba realizando aquilo que pode ser considerado seu primeiro filme.
Em 7 de maio de 1945, a Alemanha já havia assinado uma rendição formal e tentava comunicar o fato às tropas na Tchecoslováquia e Áustria. A infantaria aliada seguia rumo ao território alemão e nesta mesma data adentrou a cidade de Falkenau, localizada na fronteira com a Tchecoslováquia. Ao passarem pelos portões do campo de concentração dali, a cerca de mil jardas da área residencial, Fuller e seus companheiros foram surpreendidos pelo impossível, nas palavras do próprio. O campo de batalha era algo difícil, sem dúvida, mas aquilo ia muito além.
Descobrindo o horror!
Nas barracas havia homens e mulheres torturados, surrados e incapazes de mover seus corpos esqueléticos. Em outro prédio, pilhas de cadáveres empilhados como lixo, jogados uns em cima dos outros. Alguns ainda nem haviam morrido e estendiam a mão, olhando boquiabertos, mas fracos demais até para pedir ajuda. A descoberta dos crematórios foi um choque ainda maior. A visão dos restos de corpos nos fornos, com o odor de carne humana decomposta era demais até para quem já havia se acostumado à guerra. A prova incontestável da crueldade nazista, até então desconhecida, estava ali palpável e não era possível ignora-la.
Além do horror da descoberta, era intrigante que as atrocidades cometidas no local não tivessem chamado atenção do povo da cidade, afinal, além da proximidade, o campo era circundado apenas por arame farpado. Pessoas em péssimas condições caminhavam pelo pátio que era visível das colinas onde crianças brincavam, e ainda havia a fumaça e o cheiro. O comandante do batalhão, capitão Richmond, levou um esquadrão à vizinhança e juntou os cidadãos respeitados do local; o prefeito, o padeiro, o açougueiro e outros. Ele exigia saber como podiam ter continuado a viver suas vidas com aquele tipo de coisa acontecendo tão perto.
Todos juraram que não faziam ideia do que ocorria e Richmond revoltou-se, pois havia aprendido a duvidar de confissões feitas naquele tipo de situação. Ordenou que uma delegação de moradores comparecesse nos portões do campo pela manhã, ou enfrentariam o pelotão de fuzilamento. O capitão sabia que Fuller havia recebido de sua mãe uma câmera Bell & Howard 16 mm portátil e quis que o evento do dia seguinte fosse devidamente registrado pelo soldado.
O primeiro “filme” do cineasta!
Nas primeiras horas da manhã, Fuller então filmou o capitão dando ordens aos cidadãos de Falkenau. Eles prepararam as vítimas para um funeral digno e transportaram os cadáveres de carroça até o local do enterro, passando no meio da cidade, para que ninguém mais alegasse não saber de nada. A filmagem também destaca a pequena distância entre o campo de concentração e a cidade. Os civis cumpriram as ordens levando os corpos até uma cova coletiva onde foram arrumados. Cerca de vinte minutos de imagens que são um pequeno consolo para as vítimas do nazismo, mas também um testemunho de perversidade e omissão. Esse documento histórico permaneceu mais de quarenta anos guardado, sem que Samuel Fuller ou qualquer outra pessoa o assistisse.
Em 1988, o cineasta Emil Weiss produziu o documentário em curta-metragem “Falkenau – The Impossible”, resgatando o trágico registro daquele dia com a participação do próprio Fuller, que retorna à cidade Falkenau e seu campo de concentração para comentar sua experiência e finalmente assistir ao seu primeiro filme na posição de cineasta respeitado. O que funcionou como uma espécie de sessão de terapia para ele, também é uma exibição de cenas que continuam contundentes, relevantes e absolutamente deprimentes. Está disponível completo, dividido em quatro partes na internet e não se intimide pela ausência de legendas em português, pois neste caso, o clichê da imagem que vale por mil palavras nunca foi tão verdadeiro.
Assista!