Em 1988, O Grande Dragão Branco alavancou a carreira de Van Damme
Durante a década de 1990, um dos filmes que mais passou na Sessão da Tarde foi O Grande Dragão Branco (Bloodsport), adquirindo o status de cult com o passar dos anos. Claro, estamos de algo que hoje depende muito da nossa memória afetiva, mas algo que “pega” desta forma sempre tem seu valor. Afinal, a que o longa deve essa “importância”? Bom, vamos lembrar um pouco do contexto histórico.
Depois do mestre Bruce Lee, o cinema de ação mudou. O ator/lutador apresentou ao mundo sequências de lutas elaboradas, cujo objetivo era mostrar não apenas o kung fu, mas a filosofia das artes marciais. Um ponto fundamental de suas coreografias era um realismo maior, em comparação às produções chinesas, que se valiam de cabos para que os intérpretes desafiassem as leis da física. O último filme de sua carreira* foi um game change da indústria do entretenimento: o clássico Operação Dragão, de 1973, dirigido por Robert Clouse. Um verdadeiro marco dos filmes de artes marciais, lembrando que os filmes anteriores de Lee foram feitos em Hon Kong, com orçamentos considerados amadores.
*(O Jogo da Morte não conta, pois ele não chegou a terminar…)
Após o sucesso arrasador de Operação Dragão, Hollywood viu que podia faturar com este subgênero, mas, depois da morte de Bruce Lee, nenhum astro conseguiu emplacar como seu “sucessor” nas telas. Jim Kelly, que teve um papel de destaque no filme de Lee e Clouse, ficou famoso no blaxploitation, mas não estourou de verdade. Chuck Norris, que estreou no ótimo O Vôo do Dragão, enfrentando Bruce Lee no final, também foi uma das apostas. Sua fama só firmou-se mesmo durante a década de 1980, investindo mais na ação em si do que nas artes marciais.
Por volta do meio dos anos 1980, Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone chegavam aos seus momentos de glória no cinema de ação, mas não eram artistas marciais. Naquele momento, um então campeão europeu de karatê, que sempre se interessou por teatro desde a infância, começou a aparecer no mercado. Em 1984, o belga Jean-Claude Van Damme consegue uma ponta não creditada em um filme de Chuck Norris, Braddock, para depois aparecer como um karateca gay na comédia Monaco Forever. Foi provavelmente aí que suas capacidades físicas e seu famoso espacate chamaram atenção dos produtores e papeis mais “sérios” começam a pipocar.
Em 1986, foi um vilão soviético em Retroceder Nunca, Render Jamais, dirigido por Corey Yuen, um especialista em filmes de luta de Hong Kong. Mais ou menos na mesma época em que Van Damme se envolveu na produção de Predador, onde também acabou não creditado. O jovem lutador precisava de um filme para se estabelecer como astro, então veio a proposta para o projeto “baseado” na vida do lutador Frank Dux, que quebrou vários recordes em combate de 1975 a 1980. Cortesia da Cannon, famosa pelos seus filmes baratos de ação a toque de caixa.
Dux teria participado de um torneio secreto durante esses anos, mas a maioria das suas histórias é para lá de questionável, no mínimo. Como dito em um Formiga na Tela, O Grande Dragão Branco é uma das cinebiografias mais picaretas que existem (além de um dos títulos em português mais sem-noção de que se tem notícia), já que nunca houve pista do tal torneio e os troféus de Dux teriam sido feitos por encomenda.
Voltando ao filme, o próprio Dux coreografou as lutas e cuidou pessoalmente do treinamento do ator principal, que, segundo ele, não estava pronto para o papel. Por isso, supostamente treinou por meses para ganhar forma física e técnica. Tudo para contar uma história muito “semelhante” a de outros filmes de luta: o herói quer honrar seu mestre entrando no Kumite, um torneio cruel que reúne os melhores lutadores do mundo. Existe outro conflito no fato de que Dux é militar, proibido pelo comando de disputar o torneio. Mesmo assim ele vai, rastreado por uma dupla não muito competente, que tentará impedi-lo e trazê-lo de volta.
Filmes de torneio de lutas estavam em alta na época, então o longa fez um grande sucesso. Ajudado por outros fatores, claro, para o bem e para o mal.
Um conjunto de fatores inusitados
Bom, ninguém que não assistiu ao filme quando moleque vai ter muita consideração por ele, é preciso admitir. A gente assume que é memória afetiva pura, mas atire a primeira pedra quem não pirava com esse tipo de história, com vários lutadores de tipos físicos e estilos diferentes. Apesar da precariedade da direção geral e das coreografias, mostrando que o golpe passou a quilômetros do adversário, o longa é cheio de frases de efeitos e personagens marcantes. O principal deles é o vilão: o terrível Chong Li, vivido por Bolo Yeung.
Assim como Van Damme, Yeung também havia dedicado-se por anos à prática de artes marciais, tinha feito filmes de sucesso em Hong Kong nas décadas passadas e seu papel mais famoso foi como o capanga Bolo no já citado Operação Dragão. Aliás, curiosamente, a primeira fala de Yeung no filme é a mesma de Bruce Lee no mesmo filme, adaptada para a situação (Tijolos não reagem…). Mesmo com essas besteiras, o veterano artista criou um vilão marcante não apenas pelas suas frases – “Você quebrou meu recorde. Agora vou quebrar você, como quebrei seu amigo!”-, mas por realmente dar medo com sua cara de mau e porte animalescamente musculoso.
Também é preciso comentar sobre o inevitável amigo do herói, que sempre se ferra e aqui não foi diferente. Jackson é um personagem surreal neste filme. É apenas um brutamontes que não seria chamado de artista marcial ou de lutador nem por um cego, então sua presença no Kumite já é bizarra. Nem comentamos que não há lógica na forte amizade entre os dois, que se conheceram lá mesmo. Não imaginaram que poderiam casar uma luta entre eles? O grandão é vivido por Donald Gibb, que havia sido o Ogro em A Vingança dos Nerds, de 1984.
A presença de um ator respeitado também chama atenção. Forest Whitaker (do recente Pantera Negra) já havia atuado em Platoon, A Cor do Dinheiro e Bom Dia, Vietnã, mas paga mico aqui como um dos patetas do exército que perseguem o protagonista. No mesmo ano, Whitaker apareceu no elogiadíssimo Bird, de Clint Eastwood, vivendo o mítico jazzista Charlie Parker. Como o mundo dá voltas…
Outro fator marcante é o conjunto de videoclipes, típico da década de 1980. Há pelo menos três em O Grande Dragão Branco, com Fight for Survive como tema principal e a tradicional canção motivacional dos filmes de luta norte-americanos da época. Seguindo a fórmula, On My Own é a “música triste”, que rola após o parça inseparável Jackson quase morrer pelas mãos de Chong Li. Ambas são interpretadas por Stan Bush. Steal the Night, por Michael Bishop, toca durante a cena de perseguição inútil, que só serve para mostrar a beleza da locação. Além das musicas incidentais, a trilha sonora utiliza som de teclados para emular musicas orientais. Eram os anos 1980, não se esqueça.
E assim Van Damme conseguiu fama e o nicho para atores lutadores ganhou um novo gás.O baixinho belga se tornou um nome querido do publico que consumia esses filmes, que, na verdade, não queria muita coisa. Talvez mais querido ainda no Brasil, com os títulos nacionais bestas de seus filmes lançando moda e sendo copiados em outros lançados aqui depois. Falando do Brasil, especificamente, essa onda rendeu um exemplar chamado A Gaiola da Morte…
O legado de O Grande Dragão Branco
Tudo isso posto, algo ainda deve ser dito. Por mais que O Grande Dragão Branco seja divertido e nostálgico, não é um bom filme sob nenhuma perspectiva crítica séria. Além do roteiro ser unidimensional, na falta de um termo melhor, as atuações são sofríveis. A ironia das ironias é que Newt Arnold, o diretor, foi assistente de direção em O Poderoso Chefão II (ouça nosso podcast da trilogia). Como eu já disse, o mundo dá voltas.
Como não comentar a sequência na qual Van Damme fica cego e faz caras e bocas hilárias, enquanto Chong Li inexplicavelmente não faz nada? Falando na cegueira, o vilão ainda joga o juiz em cima dele neste momento. Me pergunto até hoje o que um juiz fazia ali… Aliás, é uma piada que ele interprete um americano, pois seu inglês era horroroso. Erra do tempo verbal até a pronúncia da palavra. Mas falar mal dos talentos interpretativos e dramáticos de Van Damme é chover no molhado, pois seus filmes eram vistos apenas pelos seus dotes como artista marcial.
Mas O Grande Dragão Branco deixou o seu legado e foi influência e tanto para a cultura pop. Além colocar os holofotes nos filmes de lutas, foi a grande referência para o game Mortal Kombat. Não à toa, o personagem Johnny Cage foi baseado em Van Damme, imitando seu famoso espacate e um golpe de um momento específico do longa, Além disso, no começo da década de 1990, vieram vários candidatos a novos heróis de artes marciais: Mark Dacascos, Billy Blanks, Michael Dudikoff, Don “The Dragon” Wilson, Daniel Benhardt, etc… Aliás, Benhardt fez três continuações obscuras do filme e fez uma série de Mortal Kombat chamada Conquest. Não preciso dizer que nada disso presta, não é? Ótimo.
Pois é. Trinta anos depois (estreou nos EUA em 26 de fevereiro de 1988), O Grande Dragão Branco ainda captura nossa atenção quando descobrimos por acaso alguma reprise na TV. Esse também é o seu momento favorito de Jean-Claude Van Damme? Conta aí pra gente!
Enquanto isso, vou ali continuar treinando meu Dim Mak…