Precisamos (sempre) falar sobre Hitchcock – especialmente sobre MacGuffin
É sempre bom, vez ou outra, revisitar um tema qualquer sobre Hitchcock e seu legado no cinema. Falando sobre MacGuffin ou qualquer outra coisa, o mestre da sétima arte merece espaço cativo na memória de qualquer cinéfilo que se preze, e não há espaço aqui para discussão sobre isso.
Passando por esta afirmação clara, a ideia deste humilde artigo é entrar mais a fundo em uma das ferramentas que ajudou a elevar suas narrativas, aparentemente ordinárias, a níveis de maior complexidade.
Sem querer entrar em maiores detalhes sobre os passos obrigatórios na construção de um roteiro cinematográfico, vamos mirar este texto ao método auxiliar chamado MacGuffin, usado em narrativas fílmicas, que foi popularizado por Hitchcock – e até conhecido como MacGuffin Hitchcockiano. O que é? Para que serve? Por que existe em seus filmes? Quem também usa? Por que o filme Crepúsculo não tem? (Esta última pergunta é retórica…)
Período inglês e americano
Antes, vamos contextualizar a carreira de Hitchcock, afinal é sempre bom falar dele, mesmo que de forma básica. De origem inglesa, nasceu em 1899 em Londres, e já com seus vinte anos de idade começou a se aventurar no cinema escrevendo para filmes mudos curtos, e atuando como co-diretor.
Em meados dos anos 1920 iniciou-se o seu intitulado “período inglês”, com The Pleasure Garden – e no final desta década emplacou seu primeiro sucesso comercial no Reino Unido com Blackmail. Neste período, realizou filmes bem recebidos pela crítica, como O Homem Que Sabia Demais, posteriormente refilmado pelo próprio diretor em sua fase americana, e também 39 Degraus, que se tornou peça de teatro em alguns países, inclusive no Brasil.
Hitchcock mudou-se para os Estados Unidos no final dos anos 1930, e iniciou o “período americano”. Sua estreia em Hollywood não poderia ter sido melhor, quando lançou Rebecca em 1940. Conseguiu o primeiro e único Oscar de melhor filme em toda sua extensa carreira. Curiosamente, mesmo indicado ao Oscar por alguns filmes posteriormente, nunca recebeu a estatueta de melhor diretor, nem mesmo com Rebecca.
Clássico é clássico e vice-versa
Em sua filmografia, é possível citar alguns clássicos que marcaram época. Entre eles, o longa de mínimos cortes Festim Diabólico de 1948, filmado praticamente em tempo real como uma peça de teatro; o voyeurismo tenso e bem humorado de Janela Indiscreta em 1954; a trama estruturada de Um Corpo Que Cai, de 1957, presente entre as primeiras posições na lista da maioria dos críticos de cinema que habitam neste planeta; e também o thriller político que influenciou gerações seguintes, Intriga Internacional.
Já era, sem dúvida, mesmo criticado na época por alguns como comercial demais, um mestre do suspense e um dos nomes mais importantes que existia no cinema. Produzindo e dirigindo filmes com frequência praticamente anual, realizou obras marcantes que se tornaram referência. Seu discurso sobre o medo e como tratar o suspense de forma inteligente influenciou gerações posteriores de cineastas.
Mesmo com um nome estabelecido no final dos anos 50, foi em 1960 que Hitchcock atingiu o maior sucesso comercial de sua carreira, por meio da realização de um filme oposto as suas costumeiras grandes produções, porém revolucionário. Claro, estamos falando de Psicose, obra prima que merecerá um capítulo à parte em um outro artigo…
O gancho aqui é usar Psicose no final desta parte do texto para recordar que este clássico nos apresenta um dos mais perceptíveis usos do MacGuffin em sua filmografia.
Entrando na questão central deste artigo (já era hora!)
Partindo do básico de uma narrativa cinematográfica, podemos considerar que o principal desafio na realização de um filme é prender a atenção do espectador. Desta forma, uma história precisa ter uma boa estrutura, e faz parte da soma empregar artifícios auxiliares para que o público entre num regime de credulidade maior diante do inverossímil.
Assim sendo, nesta busca em trazer ao espectador o espetáculo que uma obra pode proporcionar, Hitchcock seguiu padrões que o tornaram popular, mas também desenvolveu e potencializou certas técnicas. Os personagens masculinos bem construídos seguem a linha tradicional do inocente acusado por algo que não cometeu. Já os personagens femininos, em sua maioria, são sedutores e inteligentes, mesmo sendo criminosas. Judy, em Um Corpo que Cai, Eve em Intriga Internacional, Marnie em Marnie: Confissões de Uma Ladra e até Marion Crane em Psicose, atuam essencialmente como vilãs extremamente sedutoras.
E dentro destas particularidades de Hitchcock, podemos considerar o uso de uma técnica relacionada ao desenvolvimento de uma trama, definida e nomeada como MacGuffin. Mesmo que este método esteja presente na construção de diversas de suas histórias, Hitchcock conseguiu transformá-la em um estimado instrumento na construção de uma história de suspense.
Este é um valioso artifício, ou elemento da trama, que chama a atenção do espectador e é geralmente algo em que os personagens se importam; porém, mesmo que a história possa girar em torno deste elemento, ele pode não ter relevância alguma. Pouca importância para a trama, mas importante para a concepção do medo, podendo ser um truque, ou também um simples recurso para uma situação problemática na história.
Exemplos de MacGuffin em seus filmes
Extraído do livro de entrevistas que Hitchcock concedeu a Truffaut, o próprio Hitchcock verbaliza alguns de seus maiores usos do MacGuffin. Em 39 Degraus, o MacGuffin é uma fórmula matemática ligada à construção de um motor de avião, e essa fórmula não existia no papel. Já em Correspondente Estrangeiro, o conhecimento de um famoso diplomata sobre uma cláusula secreta, se mostra importante para o movimento da trama, até se tornar irrelevante em sua conclusão.
Em O Terceiro Tiro, a causa da morte de Harry, início da história, se mostra dispensável depois. A busca para entender o porquê das aves atacarem as pessoas em Os Pássaros, e também os diamantes em Trama Macabra, são também alguns dos exemplos da importância do MacGuffin para a trama, mesmo não sendo a parte principal de uma história.
Talvez os mais importantes usos desta técnica pelo cineasta, até por se tratar de dois de seus principais filmes, estão em Intriga Internacional e Psicose. Revisitando as entrevistas de Hitchcock a Truffaut, o primeiro filme citado é considerado, pelo próprio Hitchcock, como sendo seu melhor uso do MacGuffin: “Meu melhor MacGuffin, e, por melhor, entendo o mais vazio, o mais inexistente e o mais irrisório, é o de Intriga Internacional. A importância sobre os segredos do governo é o MacGuffin reduzido à sua mais pura expressão: nada”.
Em Psicose, talvez tenhamos um dos mais emblemáticos. No início da história vemos a (até então) protagonista Marion Crane desviar uma quantia alta em dinheiro de um banqueiro para fugir de sua cidade. Nesta fuga, esta personagem esconde as notas em um jornal ao se hospedar em um dos quartos do Bates Motel.
Seu desaparecimento, morta por Norman Bates (spoiler? Ah vá!), acontece por razões que não envolvem o dinheiro, mas faz com que sua irmã suspeite de que este seja o motivo de um possível sequestro ou assassinato. É um ótimo exemplo do MacGuffin Hitchcockiano. O elemento motivador inicial da história é dispensável no decorrer da trama.
O legado do MacGuffin Hitchcockiano
Deixando um pouco de lado quem moldou e mais se apropriou desta técnica, vale dizer que o MacGuffin se tornou algo muito útil para diversos outros cineastas mais modernos.
Para começar com algumas referências, é possível mencionar a influência da técnica em dois dos filmes mais importantes de Quentin Tarantino. Um objeto marcante do filme Pulp Fiction, a mala em que Samuel Jackson carrega, é confirmado pelo próprio diretor como “um puro MacGuffin. Não sei e nem me importo com o que há na mala”.
Em Cães de Aluguel, a sacola roubada com os diamantes também não deixa de ser mais um ótimo exemplo. Mesmo sendo o motivo da desarmonia entre os participantes do roubo, o espectador praticamente esquece de sua existência após a parte inicial do filme.
Conhecidos por filmes recheados de humor negro, os Irmãos Coen também souberam aplicar bem o MacGuffin. Um bom exemplo é o filme Onde os Fracos Não Tem Vez. A maleta que carrega 2 milhões de dólares, objeto que desencadeia uma violenta e sangrenta perseguição, move os personagens para um objetivo que se torna secundário com o andamento da história.
Mesmo citando apenas alguns, a verdade é que existem muitos elementos em histórias para o cinema que poderiam ser chamados de MacGuffin, afinal a pista falsa para o espectador, ou algo que parece muito importante, mas não é, não são incomuns. O segredo da técnica é ser usada com plena consciência de sua funcionalidade. E isso Hitchcock fez bem…