Tudo o que você precisa saber sobre Jesus e o Cinema Trash
Jesus Franco Manera, ou Jess Franco, foi um dos mais prolíficos cineastas da história do cinema mundial – e até da galáxia, se bobear – tendo em seu registro mais de 200 filmes creditados, sendo a maioria em longa-metragem. Todos no cinema trash. Seu primeiro filme como diretor foi o documentário em curta El Árbol de España, de 1957, e seu último foi em 2013 – porém, desde os anos noventa não apresenta nada que seja muito interessante; talvez seu último trabalho mais vistoso seja Vampire Blues de 1999.
Mas é difícil afirmar isso, porque é quase impossível ter acesso aos 203 filmes dele – ou mais, porque esse registro do IMDB não é oficial. Dizem que ele fez mais de 300, muitos usando os seus vários pseudônimos. Fora isso, existem os diversos cortes de produtor, versões do diretor, com comentários, etc. Nas décadas de 70 e 80, houveram anos em que ele chegou a dirigir mais de sete filmes.
Franco teve a carreira marcada pelo cinema trash, sendo aclamado o “papa” deste gênero, estilo este quase sempre trabalhou com a vertente do cinema erótico; e em especial o horror erótico, que foi aonde chamou mais atenção e deixou sua marca. O papa do trash chegou até filmar no Brasil – o divertido Garota do Rio, de 1969.
Jesus Franco é espanhol, nascido em Madrid, 1930, e além de cineasta ele também era músico, tendo composto diversas músicas para seus filmes como multiinstrumentista (principalmente piano e trompete). A arte era uma coisa e um dom de família – em particular, a música, pois seu irmão também era músico. Sua carreira no cinema veio primeiro como assistente de direção, de nomes como Juan Antonio Bardem, tio do famoso ator Javier Bardem, e Luis Garcia Berlanga.
Mas sua grande contribuição como assistente de direção e diretor de segunda unidade veio nos anos 60, quando ninguém mais que Orson Welles, filmando na Europa sua obra-prima Falstaff – O Toque da Meia-Noite, o contratou para dirigir a segunda unidade deste filme. Jesus e Orson ficaram muito amigos, e o gênio americano ainda queria o amigo para trabalhar com ele em outros filmes.
Porém Jesus queria continuar sua carreira como diretor. Nisso, já era 1965, e o cineasta espanhol ainda estava começando a ganhar notoriedade, Franco ainda ajudou Welles no lendário projeto Don Quixote, obra inacabada nos anos 50. Franco viveu uma vida com muitas polêmicas – até hoje não se sabe o porquê dele ter sido expulso da escola de cinema, por exemplo. Foi considerado pelo Vaticano como o diretor mais perigoso do mundo, ao lado de Luis Buñuel(uma forte influência em sua obra), e ainda foi perseguido pela ditadura Franquista nos anos 60 e 70, tendo que fugir e mudar de país para continuar trabalhando na sétima arte.
Apesar de ser lembrado em geral seu cinema erótico, com muito surrealismo e maneirismo, Jesus Franco começou sua carreira dirigindo filmes mais clássicos de horror, e foi só no final dos anos 60 que achou seu caminho como diretor de sex-exploitation. Com Necronomicon, de 1968, foi ao festival de Berlim, e lá passou por um incidente curioso.
Na saída da exibição do seu filme, com várias pessoas elogiando e o parabenizando por ele, um senhor já um com uma certa idade parou em frente a Jesus Franco e, após parabeniza-lo, colocou um cartão com um telefone em seu bolso, dizendo: “Me ligue. Gostei muito do seu filme, vamos conversar“. Na euforia e tumulto do momento, o cineasta espanhol nem percebeu quem era o senhor que havia o parabenizado.
Horas depois, no quarto do hotel, Jesus encontrou o cartão que o senhor tinha deixado com o telefone e o nome dele no bolso de sua camisa. Jesus, ao tirar o cartão, foi ler o nome da pessoa. O que estava escrito? “Fritz Lang“.O cineasta, sem reação, pegou o telefone na hora, ligou para Lang se desculpando por não ter o reconhecido, e passaram horas falando sobre o filme dele e outras coisas.
Um cineasta mais conhecido pelo cinema trash e erótico que tem amigos e admiradores como Orson Welles e Fritz Lang é de deixar a gente curioso certo? Confesso que quando descobri Jesus Franco, tinha um preconceito com o mesmo. Mas era pura infantilidade minha na época, cerca de dez anos atrás. Hoje é um dos meus diretores favoritos, por muitos motivos.
Tive o grande prazer de me apaixonar pelo seu cinema, e ver dois dos meus filmes favoritos dele na telona do cinema, graças às sessões do Comodoro, que eram organizadas pelo saudoso cineasta e mestre Carlos Reichenbach. Tudo meio sem querer, abri um pouco a mente, e descobri esse mestre do cinema de vários gêneros. O cara já fez filme de horror clássico, cinema erótico, surrealista, sadomasoquista, canibais, horror com zumbi e monstros, filmes do Fu Manchu, femininos de vingança, de vampiros, lésbicos, e até slasher – isso contando somente o que eu vi e li a respeito; deve ter muita coisa ainda para ser descoberta.
Um dos poucos cineastas a dar o devido valor ao poder feminino na tela nas décadas passadas – apesar de usar as mulheres na maioria das vezes como sex-symbols, já existia um empoderamento em suas personagens, principalmente na sua parceria com Soledad Miranda. Os filmes da caixa lançada pela Obras-Primas do Cinema demonstram isso – em particular com Ela Matou em Êxtase, de 1971, e também Vampyro Lesbos, de 1971. Vamos comentar um pouco sobre eles!
Jesus numa caixa
Vampyros Lesbos é realmente uma obra-prima dessa belíssima caixa. Nesse clássico de Franco, temos o diretor usando suas melhores habilidades e características, e potencializando elas. Soledad Miranda é a Condessa Nadine Carody, uma vampira que atrai novas vítimas para sua ilha, para assim aprisiona-las e mata-las. Mas o que ela não esperava era se apaixonar por uma de suas vítimas, a bela Linda Westinghouse (Ewa Stromberg), e isso vai mudar o destino de sua história. A película de Franco é considerada sua versão lésbica para o Drácula, de Bram Stoker.
Nesse filme temos uma grande direção do espanhol, sempre com sua alegoria surrealista – em quase toda sua obra, suas vampiras são vampiros de alma; não aquele clássicos que não suportam à luz do dia ou que tem dentes pontudos. Estes sugam a alma, sangue e até a energia vital de suas vítimas, A Condessa Nadine segue essa linhagem de vampira de Franquiniana, e inclusive, neste filme, temos lindos planos da personagem aparecendo no espelho, contrariando o padrão dos vampiros clássicos.
Uma das melhores interpretações de Soledad, e as boas atuações do seu elenco coadjuvante, contribuem para que essa seja uma de suas obras mais marcantes. Aqui, ele não abusa dos seus famosos zoom, mantendo assim uma cinematografia muito bonita, com uma fotografia acima da média, e usando locações belíssimas – fortalecendo seu estilo maneirista e fazendo uma combinação fatal com o erotismo da sua musa e da sua história. A trilha-sonora lisérgica vem só para manter o alto nível dessa grande película.
Já Ela Matou em Êxtase conta a história de Mrs. Johnson (Soledad Miranda), que depois de ver seu marido se suicidar, resolve vingar as pessoas que o humilharam. Mr. Johnson (Fred Williams) era um medico todo errado que fazia experiência com embriões humanos e que quando foi descoberto perdeu sua licença medica, além de ser demitido e humilhado.
Vagamente baseado na obra de Stevenson, O Médico e o Monstro, Jesus Franco fez aqui um dos seus filmes clássicos de vingança, em que podemos destacar a atuação sexy e fatal de sua musa – em sua quinta parceria com o diretor. Mrs. Johnson desfila com um leve tom surrealista, como se fosse um vampira sedenta por vingança.
De uma certa forma, a história lembra um pouco A Noiva Estava de Preto (1968), de François Truffaut, uma obra-prima do mestre francês, no melhor estilo Hitchcockiniano. Enquanto o mestre Truffaut realizou primorosamente um suspense, aqui Franco brinca mais com o erotismo da sua musa, e a ideia de que a vingança será inevitável para aqueles que fizeram seu marido cometer suicídio.
Em Santuário Mortal, de 1969, baseado obra de Marquês de Sade, temos a história de uma jovem chamada Justine (Romina Power). Ela e sua irmã Juliette (Maria Rohm), são expulsas de uma escola quando sua mãe morre, e, sem dinheiro e sem outros parentes para poder ajuda-las, elas buscam alternativas.
Sua irmã decide se prostituir, e consegue assim sobreviver e viver livre e bem; já Justine tenta viver uma vida normal e honesta, mas entrando num mundo de degradação e sadomasoquismo. Ela consegue trabalhar como empregada num castelo de um sádico rico que começa a abusar dela. Ela consegue fugir, mas toda vez que ela parte para outro lugar, ela descobre alguma podridão em quem está disposto a ajuda-la ,e com isso vai despertando em si um prazer bizarro em ser abusada e torturada.
Tudo isso é contado ao mesmo tempo em que o Marquês de Sade (Klaus Kinski) vai escrevendo a história. Pouco depois, ele é preso, e passa a ser atormentado por visões eróticas na cadeia. Dos anos 60, é um dos filmes mais tradicionais de Franco, e a direção de arte e fotografia mais uma vez são brilhantes, aproveitando cenários e monumentos históricos espanhóis.
Apesar da sinopse do filme, pasmem, trata-se de um dos filmes menos erotizados de Franco. E com um grande problema no elenco principalmente. Conforme ele mesmo relata nos extras do DVD, ele teve que dar o papel principal de Justine para filha do grande ator do cinema clássico americano Tyrone Power, a jovem atriz Romina Power, sendo que ele preferia para o papel a atriz Rosemary Dexter (Por Uns Dólares a Mais), que era uma atriz muito mais talentosa e mais interessada no cinema de Franco.
Então acompanhamos uma Justine com caretas e intepretações insossas, que deixam o filme um pouco mais fraco que o de costume – além do filme soar um pouco repetitivo e longo, mesmo tendo só 124 minutos. Porém, temos aqui a primeira de quatro parcerias entre Klaus Kinski e Franco, o mito alemão que faz o Marques de Sade sofrido e amargurado por seus desejos.
A curiosidade aqui é que o papel anteriormente foi oferecido ao Orson Welles; ele negou, afirmando não trabalhar com filmes eróticos. Temos também Jack Palance, grande ator americano, mas aqui com uma atuação no mínimo “diferenciada”, interpretando Antonin, um monge de uma seita religiosa em que eles buscam o prazer supremo, onde Justine vai parar.
Temos também Lua Sangrenta, de 1981, que conta a história de Miguel, um jovem com rosto desfigurado que ajuda sua irmã a administrar uma escola de línguas estrangeiras para garotas. Logo de cara, percebemos uma relação esquisita entre os irmãos, e Miguel se apaixona por uma aluna chamada Angela e este começa a segui-la por todos os lados – ao mesmo tempo que as amigas de Angela começam a morrer.
Esse slasher é uma grata surpresa de Jesus Franco no auge do subgênero; muitos o consideram um dos slasher mais pesados, por da famigerada cena em que uma faca atravessa um seio de uma das meninas, perfurando seu mamilos. Pesado! Lembrando os clássicos do gênero como Halloween e Sexta-Feira 13, Franco brinca com o que sabe fazer de melhor: mortes bizarras, com um toque de humor, e muitos momentos eróticos de soft-porn. Sendo um filme do Franco obviamente tem que ter uma pitada de cinema trash – uma cena de morte em que fica óbvio que usaram um manequim, por exemplo, é risada na certa.
As parcerias e influências
Já falamos de Soledad Miranda. Foi uma atriz que fez oito filmes com Jesus Franco, que a descobriu como coadjuvante em diversos filmes espanhóis dos anos 60, tornando-a sua musa, e posteriormente um ícone do cinema exploitation e B. Infelizmente, ela faleceu aos 27 anos de idade em 1970, num acidente de carro logo quando estava despontando para ser uma das maiores estrelas espanhóis de sua geração.
Ela tornou-se então uma espécie de versão feminina de James Dean do cinema de gênero. Além desses oitos filmes juntos, há também um filme em que ela aparentemente fez uma ponta e não foi creditada; incidentalmente, alguns destes oito filmes ela sequer viveu para ver finalizados.
Se falemos da parceria com a mítica Soledad Miranda, temos também uma parceria histórica de Jesus com Christopher Lee; primeiro no filme da saga do personagem Fu Manchu, e depois na versão de Drácula feita pelo cineasta espanhol, que considera a sua versão a melhor de todas – inclusive melhor que a de Coppola. Lee e Franco fizeram juntos oito filmes ao todo. Dá até para se discutir qual Drácula de Lee a gente prefere: o da Hammer ou do cinema B.
Não tem como falar de Jesus e não falar de Lina Romay, que foi esposa e musa do diretor durante quase toda sua vida. Se conheceram nos anos 70, e, de lá para cá, formaram uma parceria icônica. Lina era atriz, e o braço direito de Franco, ajudando-o em tudo o que podia. Era a verdadeira musa inspiradora, trabalhando junto com ele em mais de cento e vinte títulos. Muito adoecido, em 2013 Jesus Franco faleceu, mas um ano antes teve que ver sua esposa morrer.
Tendo Jesus Franco como referência, Pedro Almodóvar é um cara que adora e respeita muito o trabalho do “tio” espanhol – inclusive usando cenas de filmes da caixa aqui mencionada, como as cenas de Lua Sangrenta em seu filme Matador.
Outro cineasta que é apaixonado por Franco e o usa como referencia é Quentin Tarantino. Os famosos planos onde ele coloca a câmera subjetiva dentro do porta-malas, vem dos clássicos takes de Jesus Franco de seus filmes de vampiro e seu olhar subjetivo de dentro do caixão. Também os famosos zoom in que Tarantino adora é uma marca registrada do maneirismo de Franco. Tarantino inclusive usou uma das músicas de Vampyro Lesbos em seu Jackie Brown, de 1997.
Se você curtiu as referências do artigo, outros filmes que recomendados de Jesus Franco são: Necronomicon (1968), Garota do Rio (1969), Conde Drácula (1970), Eugenie e o Caminho da Perversão (1970), e A Maldição da Vampira (1975). Fica a dica para Obras-Primas do Cinema fazer uma segunda caixa com essas pérolas.
Falando neles, a Obras-Primas do Cinema está de parabéns pela caixa, que disponibilizou cópias com imagens em alta qualidade e som muito bom. Além de ótimos extras e lindos cards, fico feliz com o devido carinho e respeito da distribuidora com o mestre dos filmes B.