Harakiri – A Morte de um Samurai
Há cinquenta e seis anos, era concebido no estúdio da Shochiku o filme Harakiri (Seppuku). Dirigido por Masaki Kobayashi e com o roteiro de Shinobu Hashimoto (responsável pela obra-prima Rashomon), a história é ambientada durante o período da Era Edo, época em que o Japão ficou sob “ditadura militar feudal” com o poder centrado nas mãos dos xoguns da família Tokugawa. O regime só terminaria em 1868, com a Restauração Meiji.
Narrando a história na precisa data de 13 de maio de 1630, a obra nos leva a conhecer Hanshiro Tsugomo (Tatsuya Nakadai, famoso e brilhante ator que participou de filmes como Yojimbo e A Espada da Maldição) samurai experiente que está decidido a cometer harakiri, o que o leva a propriedade do Clã Iyi liderado pelo senhor Kageyu Saito (Rentâro Mikuni).
Antes de conceder a permissão do ritual a Tsugomo, Saito conta a história de um jovem chamado Motome Chijiiwa (Akira Ishihama), que também lhe pediria o mesmo favor, mas tendo fraquejado e desistido na última hora. Para servir de lição a outros samurais, Saito força Motome a cometer o harakiri.
Mesmo após ouvir a história, Tsugomo mantém-se decidido em sua escolha, encaminhado rapidamente para o pátio da propriedade onde irá realizar o seppuku. Entretanto, antes de iniciar o ritual, ele decide contar a própria história explicando os motivos que o teriam levado a executar o ritual naquele local, revelando assim a sua ligação com Motome.
Tsugomo contra a tradição feudal
O protagonista Tsugomo é interpretado pelo excelente ator de formação do teatro Kabuki: Tatsuya Nakadai. Nakadai criou um personagem complexo e intrigante, que, em seu relato, aos poucos vai revelando os motivos de estar ali na casa do Clã Iyi. Com o andamento do filme, percebemos que Tsugomo está à frente de todo o clã Iyi por consequência de apenas um sentimento – vingança.
Rodeado por diversos samurais (veja que a composição é bem estruturada, colocando o protagonista no centro do cenário, e o uso do contra-plongée entre Saito e Tsugomo, mostrando a diferença hierárquica entre os personagens), o experiente Tsugomo sabe que a morte será certa, mas antes precisa mostrar a todos como o sistema tradicional japonês é falho e opressivo. A cena da armadura de um antigo senhor feudal sendo levada ao chão, no epílogo da obra, acrescenta e convicta o ideário do protagonista.
Miséria e Suicídio – Harakiri contra o Código Samurai
Harakiri não é apenas um filme sobre o período Edo; é uma crítica ao bushido (código de conduta e vida do samurai). Com o fim das guerras, a paz foi semeada em todo o território japonês; logo os samurais já não serviam mais para os senhores feudais. Por conta disso, muitos ficaram desempregados e a miséria se espalhou. Motome é um dentre tantos que ficaram a mercê de toda essa situação. Como o dinheiro ganho por ensinar kenjutsu (técnica de combate com espadas) às crianças do vilarejo não era suficiente, ele decide vender a sua espada, quebrando assim um dos códigos do bushido, já que a espada é a alma do samurai.
Os problemas aumentam quando, ao mesmo tempo, sua esposa e filho adoecem, transtornando ainda mais o jovem samurai, levando-o a usar a última carta da manga. Muitos samurais desempregados e ronins (samurais “sem mestre”, que não seguem o código do bushido) tinham se dirigido à casa de grandes clãs solicitando o espaço para realizar o ritual do Seppuku e, em um momento de pena, os líderes lhe davam dinheiro para não cometer tal “suicídio” em suas residências.
Tendo escutado essas histórias pela aldeia onde mora com a família, Motome em uma decisão desesperadora: decide ir ao Clã Iyi para implorar assim o lugar no qual executará o harakiri. Na espera de receber dinheiro em troca da desistência, Motome é surpreendido quando Saito aceita sua decisão, mostrando que é isento da mesma compaixão que os líderes de outros clãs. Motome não tem nenhuma chance de escapar, e o ritual deverá ser realizado.
O violento e sangrento Ritual do seppuku
E é justamente essa cena que causa arrepios. O jovem samurai até tenta voltar atrás na sua decisão, mas é obrigado por Saito a manter a palavra, visto que se não cumprir o trato do harakiri será morto pela guarda do senhor. Percebendo que não há como escapar, o ritual tem início. Obrigado a usar uma espada de bambu (o coitado tinha vendido a de aço para sustentar a família), é angustiante e doloroso ver Motome cometer harakiri.
Não é fácil rasgar o abdômen com a madeira, e mesmo assim o sádico “ajudante” (nome que se dá ao homem responsável pela decapitação, após o samurai em ritual ter penetrado completamente a lâmina no corpo), Hikokuro Omodaka (Tetsurô Tanba, o Tiger Tanaka de Com 007 Só Se Vive Duas Vezes), força-o a realizar do modo tradicional, o ritual abrindo os intestinos em forma de cruz.
Kobayashi montou uma cena realmente violenta e memorável, mostrando tanto em close ups a reação de Motome a cada investida, como também pouco a pouco a penetração da madeira em seu corpo. A cena de tão forte chocou muitas pessoas. No Brasil, algumas até desmaiaram durante a exibição no Cine Coral (antigo cinema de São Paulo que exibia circuito alternativo nos anos 1960), segundo relato do professor Sedi Hirano na dissertação de Mestrado do professor e antropólogo Alexandre Kishimoto (A Experiência do Cinema Japonês no Bairro da Liberdade).
Harakiri: Uma Crítica à Modernidade
Mesmo sendo um jidaigeki (gênero de filme ambientado no passado), Harakiri também faz uma crítica aos resquícios do bushido na época contemporânea, e a certos mitos samurais da fantasia. Mesmo sendo a respeito de outra época distante, se refere à época em que foi feito. Kobayashi é um entre tantos cineastas (Shohei Imamura, Yasuzo Masamura, Yoshishige Yoshida e Nagisa Oshima, por exemplo) da “Nouvelle Vague da Shochiku” (conhecida também apenas por Nouvelle Vague Japonesa ou Noberu Bagu, no Japão), que criticavam o sistema tradicional japonês durante a ocupação norte-americana, culturalmente enraizado na sociedade nipônica.
Para muitos historiadores e cineastas, o fim da Segunda Guerra Mundial foi constituído como um “divisor de águas”, onde os países deveriam recomeçar do zero, “renascer das cinzas” (parafraseando aqui a pesquisadora sobre cinema japonês, Lúcia Nagib). Entretanto, para o Japão era totalmente diferente. De uma hora para outra foi forçado a adotar um sistema social, cultural e político norte-americano. E era exatamente neste quadro que estes cineastas surgem. Influenciados pela cultura ocidental, eles desde o começo não aceitavam os padrões que o cinema japonês impunha. Assim, a violência e o sexo invadiram o cinema japonês.
Kobayashi descobriu, como outros cineastas, que se ambientar problemas contemporâneos no passado causa ao espectador novos contrastes dramáticos. Dessa afirmação, surgiu um novo gênero cinematográfico, o Serious Period Film (filme histórico sério), definição dada pelo crítico e especialista em cinema japonês norte-americano Donald Richie. Segundo o especialista, no filme “a história é presentificada com realismo, e o presente é criticado no contexto do passado”.
O escritor Cláudio Willer comentou sobre os resquícios do bushido na época contemporânea e as consequências do tradicionalismo feudal: “A crítica que começou com Seppuku ou Harakiri, de que aquilo tudo era expressão de uma sociedade feudal, altamente hierarquizada, um sistema de relações de dominação, e também que essa mítica do samurai errante era consequência de uma crise, quando houve a centralização“. Harakiri é uma dentre tantas obras cinematográficas que condenam a contemporaneidade influenciada pelas tradições feudais, assim como também o antigo sistema feudal.
A Linguagem Cinematográfica em Harakiri
Tendo conquistado o Prêmio Especial do Júri de Cannes de 1963, Kobayashi soube utilizar a linguagem cinematográfica de maneira honrosa e memorável. Começando pelo excelente uso de travellings e fusão para adentrar o espectador nos flashbacks de Saito e Tsugomo, o diretor também foi bem sucedido com os diversos planos sequência dentro da residência do clã Iyi. Outra cena interessante é auxiliada pela fotografia de Yoshio Miyajima, quando Tsugomo e Miho (esposa de Motome) aguardam ansiosamente o retorno de Motome. A angústia e o desespero são representados por uma casa vazia e completamente escura.
Mas o momento da obra que mais gosto é o duelo entre Tsugomo e Omadaka. Começando a batalha em um cemitério, logo é trocada para um cenário com gramas altas (clichê em filmes de samurai que são essenciais para o gênero), e cercada por uma plantação de bambu, criando assim a relação com a espada de Motome usada no ritual, e trazendo à tona o sentimento vingativo de Tsugomo. O resultado do combate, deixo a cargo do leitor averiguar.
Há também a presença massiva da trilha sonora (criada por Tôru Takemitsu), e sons para ilustrar cenas e as sensações e sentimentos dos personagens. Como por exemplo, os passos de Tsugomo (aumentam a ansiedade da cena) e o canto de um pássaro, quando Motome acha que conseguiu ajuda financeira do clã, simbolizando o alívio do personagem. Em suma, a última batalha entre Tsugomo e os samurais da residência, mostra-se bem estruturada e organizada geograficamente, com longos planos e cortes precisos.
O Legado de Kobayashi a Takashi Miike
Kobayashi criou uma obra perfeita, criticando um sistema culpado pela morte de Motome, sistema que seria parte integrante do modo de vida tradicional japonês. Como o próprio Tsugomo comenta: “Bushido é, no final das contas, uma reles fachada“. O excêntrico e brilhante cineasta, Takashi Miike, refilmou em 2011 a obra de Kobayashi, intitulado Ichimei (no ocidente, ganhou o nome de Hara-kiri: Death of a Samurai), recebendo elogios da crítica e participando da seleção oficial de Cannes no mesmo ano. Não é brilhante como o original, mas vale a pena conferir.
De diversas produções do gênero chanbara (filmes de samurai) Harakiri é com certeza imperdível, uma obra prima da década de 1960. Cabe apenas, a você leitor, conhecer a história de Tsugomo, e mergulhar para além do cinema de Kurosawa e Ozu.