A imagem que não força a magnificação em Fúria Selvagem, clássico setentista
É possível um filme ser grandioso sem se valer de efeitos especiais ou atuações histriônicas? Difícil conceber uma resposta imutável, mas há provas na Sétima Arte de que a grandiosidade pode andar lado a lado com a sutileza. Fúria Selvagem (Man in the Wilderness, 1971), que pode-se dizer sem pestanejar ser o melhor filme da carreira do diretor Richard C. Sarafian, é um exemplo clássico de como é possível narrar uma aventura intensa sem precisar de intermináveis rufares de tambores a cada acontecimento insólito.
E por falar em tambores, a trilha sonora de Fúria Selvagem, que leva a assinatura de Johnny Harris, é quase uma propaganda enganosa. Não bastasse o impacto da cena de abertura, onde uma espécie de barco sobre rodas abre caminho pela paisagem do oeste americano cercado de homens em busca de peles que podem garantir fortunas, os acordes de Harris são um convite para o espectador já habituado ao cinema de ação, que pensa estar diante de um exemplar que terá muitas lutas, espingardas barulhentas e dezenas de cenas da eterna luta homem versus natureza. Vai ter tudo isso. Mas não será de forma comum.
Os mais jovens talvez já tenham ouvido falar dele por ele ter como base a mesma história do oscarizado O Regresso (leia também a resenha do livro), do mexicano Alejandro G. Iñárritu. Porém, vale deixar de lado a produção que deu o tão sonhado prêmio de melhor ator para Leonardo DiCaprio. O que Iñárritu tem de megalomaníaco, Sarafian tem de poético. Sua versão da vida do homem que foi atacado por um urso e abandonado a própria sorte por seus companheiros de caça é silenciosa como um animal antes de seu ataque.
Sem preocupar-se em apresentar com profundidade seus personagens, Fúria Selvagem já tem em seus primeiros minutos o já citado ataque do urso. Zachary Bass, interpretado por um inspirado Richard Harris, tem a carne rasgada pelas garras do animal e uma perna quebrada por uma queda durante a luta com o mesmo. Sim, ele não é um homem qualquer. Não apenas seus reflexos são afiados: sua alma é feroz. É essa alma que será o fio condutor do filme a partir do momento em que, sozinho e machucado, ele começa um processo de recuperação, digamos, “de raiz”.
Os dias inertes devido a perna quebrada e aos ferimentos causados pelo “bichinho” gigante e peludo são retratados sem pressa. O mínimo movimento, a leve cicatrização e as pequenas vitórias, como conseguir se arrastar até o rio para beber água, acontecem diante da câmera em tons amarelados e com ênfase para os planos-detalhe das mãos de Bass. É com elas que ele disputa com um casal de lobos a carne de um búfalo abatido e é olhando para gestos ainda precários que ele retorna ao seu passado.
A função dos flashbacks em Fúria Selvagem não é apenas trazer para o espectador quem é Zachary Bass e como ele chegou até aquele ponto. Sarafian está mais interessado em apresentar a filosofia que move o protagonista e ela se resume a ideia de que a humanidade é um caso perdido. Mesmo quando encontra a oportunidade de descambar para o piegas nas partes que fazem alusão ao filho que ele abandonou e a morte de sua mulher, o ritmo se mantem firme.
Outros tempos, outro tipo de protagonista
Apelar para o sentimentalismo nunca foi o forte de Sarafian, para o bem do cinema dos anos 1970. Zachary Bass é o homem-símbolo da sua maneira de encarar o mundo e os filmes: quer ser maior que a força bruta e se nega a aceitar o tal destino de que falam as religiões. Sua fé está na faca improvisada, no fogo feito de modo artesanal, na pele de animal curtida e transformada em proteção para o frio. É essa a figura representada com a paleta de poucas cores, ao contrário do filme de Iñárritu, onde a neve comanda o oeste e tudo é muito azulado. Em Fúria Selvagem, mesmo com os flocos brancos caindo, ainda podemos avistar os galhos das árvores e um ou outro pedaço de terra vermelha. A beleza inóspita do oeste não some no inverno, assim como a força de Bass não é afetada pelas baixas temperaturas.
Paralelo à via crucis de Bass em busca dos colegas de ofício que o abandonaram no meio do nada, há Capitão Henry, vivido pela lenda John Huston. Seu barco com rodas cruza os terrenos inóspitos em busca de peles. Bass se equilibra em sua perna saudável em busca de sobrevivência e vingança. Uma vingança com data marcada para acabar, já que depois de acertar as contas com quem queria vê-lo morto e enterrado, ele vai de encontro ao homem que um dia ele foi, longe dos perigos das montanhas.
Bass também revigora sua proximidade com a natureza. Não é todo dia que uma tela de cinema exibe um homem cheio de cicatrizes acariciando um coelho, como se fosse a mais doce das criaturas. É o momento do espectador sorrir, cúmplice de um tipo de cinema que entrou em extinção nos nossos tempos. Talvez seja a hora da nova geração voltar seus olhares para obras poderosas, intensas e sem maneirismos cênicos. Começar pela década que nos deu maravilhas como Mais Forte Que a Vingança e Um Homem Chamado Cavalo é uma boa pedida.
Aliás, o filme integra a caixa Cinema Faroeste Vol. 4, da Versátil Home Video.