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Fando e Lis – Quando a linguagem é mais importante que o contexto!

Fando e Lis oferece um desafio para o espectador

Eu tinha pouquíssima intimidade com o trabalho de Alejandro Jodorowsky. O cineasta, poeta, escritor, psicólogo, mímico e tarólogo (ufa!) tem uma obra cinematográfica pequena em quantidade, com apenas nove filmes lançados, e um público bastante restrito, mas diversificado (dentre seus fãs assumidos, temos tanto John Lennon quanto Kanye West).

Passei então a segui-lo no Twitter (onde ele possui mais de um milhão de seguidores) e percebi que quase todas as suas postagens falam sobre psicologia, como um grande livro de autoajuda em 140 caracteres, ou sobre humor. Ele, vez ou outra, versa sobre suas obras com um público que, via de regra, é muito novo para se lembrar do impacto social e cultural que filmes como El Topo e A Montanha Sagrada tiveram à época do lançamento. A forma como ele aborda e responde abertamente aos jovens, com lirismo, me fez ter interesse em me aproximar da sua obra.

fando e lis

Os protagonistas Fando e Lis

Assisti, então, ao seu primeiro longa-metragem, Fando e Lis, de 1968. A fantasia, que relata a busca do casal protagonista (interpretados por Sergio Klainer e Diana Mariscal) pela mítica cidade de Tar em um mundo pós-apocalíptico, é chocante e tocante na mesma medida. E, inicialmente, confuso para quem não está acostumado.

Eu vi o filme três vezes. Na primeira, a consternação foi o sentimento predominante. Alguns diálogos e imagens me impactaram, mas não consegui fazer uma análise mais profunda do contexto. Não consegui me conectar aos personagens. Não consegui apreciar o filme. Na segunda vez, porém, eu cheguei a voltar algumas cenas, prestando mais atenção ao contexto em que elas se aplicavam.

A conexão com eles (principalmente com Lis), surgiu e eu passei a entender a proposta do autor (termo mais adequado a Jodorowsky, que adaptou o texto da peça junto com o autor original, Fernando Arrabal). Fazendo uma análise da linguagem usada, da terceira vez, consegui entender a proposta e as licenças poéticas.

O diretor semiótico

A semiótica é o estudo dos símbolos, tanto linguísticos quanto visuais, para a construção de uma obra, seja ela audiovisual ou textual. Jodorowsky é um autor semiótico. Suas imagens, sua narrativa (tanto diálogos quanto narrações em off) e seu adequado uso de trilha sonora transformam a experiência em algo único, onde absolutamente tudo em tela tem uma razão de ser.

Temos Fando, um homem adulto, mas infantilizado (tanto em expressões quanto no vestuário, que muito lembram algo como Dom Quixote) e Lis, uma bela mulher na flor da idade, mas dependente física e emocionalmente do companheiro. Lis, paraplégica, não é conduzida em uma cadeira de rodas, e sim, em um carrinho, o que torna a locomoção do casal por paisagens áridas bastante difícil, o que é o objetivo (a busca pela idílica Tar somente poderia ocorrer mediante o sofrimento e adversidades).

Em vários momentos Fando a carrega na lomba, como simbolismo para o peso (aqui, metafórico), de carrega-la. Lis, em contrapartida, lamenta a todo instante ser carregada, sentindo ser um obstáculo para que o companheiro alcançasse o objetivo.

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Definitivamente, não é um filme leve

Além da paisagem cheia de pedras, o uso de luz estourada, como que um sol escaldante, torna o filme muito claro, um bom recurso para contrapor à decadência negra das pessoas que vivem naquele lugar (que poderia ser em qualquer lugar) e também um inteligente recurso de produção, para um filme que seria, inevitavelmente, filmado em preto e branco.

Fando e Lis possuem uma relação de co-dependência. É interessante a escolha do autor pelo símbolo do abandono. As cenas em que Fando a deixa para trás são sempre vazias de trilha. Em uma delas, inteligentemente, o único som é o eco de Lis pedindo a volta do amado.

Ela, mesmo abandonada, o perdoa todas as vezes, pois precisa dele “para sobreviver”, mas não fisicamente, somente. O emocional fala muito mais forte. Em uma cena cômica, rara em toda a obra (são duas ou três em que você realmente consegue sorrir), eles exaltam a beleza de um velório (a música, aqui, uma fanfarra alegre, ironicamente, repetida em uma outra sequência mais cômica).

Nas mãos do espectador

Algumas imagens soam mais fortes do que o contexto de cena, apenas para aludirem a sentimentos intrínsecos ao espectador. Por exemplo: ao retratar um grupo da elite, há um piano pegando fogo. Inicialmente, há um pianista, quando as chamas estão brandas. As chamas crescem e o pianista abandona o instrumento, mas a música continua, no mesmo ritmo acelerado.

Quando, por fim, o piano cede, o autor opta por reviver algumas vezes o momento em que o piano fica destruído. Eu compreendi que se tratava das tentativas, que fazemos na vida, de ver algo positivo e belo no que nos acontece, algumas vezes até insistindo no erro. A você, caro leitor, poderá caber outra explicação.

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Neste filme, toda imagem é também um símbolo

A ideia de você poder interpretar uma mesma obra de duas ou três formas diferentes, conforme a assiste, é para poucos. Eu devo admitir que prefiro uma produção mais fácil, em que você compreenda a intenção do autor de primeira. A linguagem, neste caso, bastante teatral, pode afastar aqueles que buscam algo sem muita necessidade de interpretação.

A violência, por mais estilizada que se apresente, pode chocar por ser cruel. Mas é cruel como a vida e, talvez aí, esteja o grande mérito de Jodorowsky. Ele é um homem inteligente, mas também é um grande falsário. Seu trabalho não busca ser fácil, mas, também, não é difícil. É para se pensar. Ou não pensar em nada. O que importam são as palavras, a força das imagens e a expressão dos atores.

E, nisso, poucos diretores possuem tanto talento quanto ele.

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