O que o arqui-inimigo do Batman – um dos maiores vilões da história dos quadrinhos e, graças a Heath Ledger, também do cinema – tem em comum com um dos grandes mestres da literatura universal? O que um sorriso pode esconder? As respostas podem ser encontradas – ou refletidas – em uma obra pouco lembrada do escritor francês, base para um filme clássico, mas usualmente esquecido até por alguns dos mais atentos cinéfilos. Na década de 1920, uma figura perturbou plateias com uma risada que nada continha de felicidade, em um filme que horrorizava, sem pertencer ao já popular gênero do terror. O Homem que ri (The Man Who Laughs, 1928) foi dirigido nos Estados Unidos por Paul Leni, um alemão que nos anos anteriores fora um ativo representante do cinema expressionista europeu, movimento que marcaria a Alemanha como grande fertilizadora de produções emblemáticas do período pré-segunda-guerra. O filme foi o segundo de Leni em solo americano, país onde a estética do expressionismo não havia influenciado o mercado cinematográfico, apesar do sucesso dos germânicos O Gabinete do Dr. Caligari (1920) e Nosfetatu (1922). Embora tenha cedido a pressões para manter na obra alguns conceitos já habituais das fitas norte-americanas, o diretor conseguiu introduzir fortes referências ao estilo que consagrou. O filme conta a história de Gwynplane, um homem que, ainda menino, havia sido desfigurado a mando do rei James II, da Inglaterra, devido a um crime cometido pelo pai, um rebelde membro de uma comunidade de ciganos sofredora dos desmandos do monarca. O menino tem a face rasgada por um arremedo de cirurgião e passa a ser para sempre marcado com um sorriso bizarro no rosto. O motivo, segundo o rei, era que criança sempre risse ao se lembrar das desgraças vivenciadas pelo prisioneiro. Após ter o pai executado em uma “Donzela de Ferro” – uma popular e cruel máquina de execução da idade-média – o pequeno Gwynplane é abandonado nas ruas de Londres, sendo rejeitado, inclusive, por seu povo, que não aceita mais seu rosto marcado. Gwynplane perambula pela cidade até encontrar uma jovem mãe morta com um bebê nos braços. A criança é salva pelo menino minutos antes da mulher ser atacada por aves famintas. Pouco depois, os dois são acolhidos por um homem solitário, dono de uma casa errante. Com o passar dos anos, a bebê torna-se Dea, uma mulher muito bela, porém cega, incapaz de ver o rosto deformado de Gwynplane, que nutre por ela uma paixão silenciosa. O rapaz faz sucesso como membro da trupe de atores cômicos, sob a alcunha de O Homem que ri, devido ao imutável sorriso na face, mas vive infeliz e angustiado, incapaz de aceitar o amor de Dea por considera-se indigno devido às consequências do seu rosto deformado. O Homem que Ri é um drama romântico, mas o rosto perturbador do ator Conrad Veidt, aliado a estética primorosa conquistada por Leni, gabarita o filme para estar ao lado das pérolas do terror mudo no começo do século. A despeito do riso constante na cara do protagonista, a maldade e a angústia permeiam toda a história, desde a primeira cena. Veidt consegue passar com maestria a contradição entre a alegria dos lábios e a dor íntima que sente, transpassada por olhos que não escondem seus verdadeiros sentimentos. Um personagem inesquecível sob vários aspectos. A premissa do expressionismo alemão, de colocar os sentimentos e perturbações humanas como balizadores do que chamamos de realidade, está presente nos cenários angulosos, nos detalhes dos amplos salões e quartos vazios, na agitação das feiras e multidões. O roteiro, baseado no livro homônimo de Victor Hugo, se distancia do texto original, chegando a exagerar no melodrama, mas nada que comprometa a qualidade da produção. Anos depois, resultado dessa somatória de contribuições estéticas foi visto por Bill Finger e Bob Kane, que teriam baseado o perverso Coringa no rosto de Gwynplane. O palhaço, com seu sorriso indefectível, atravessou gerações como símbolo da maldade pura frente ao altruísmo dos heróis. Os dois personagens, opostos em muitos aspectos, se unem na incapacidade de lidar com que realmente sentem. A beleza do vilão chega ao ápice cinematográfico no gótico contemporâneo Batman – O Cavaleiro das Trevas, em que Heath Ledger se apresenta como uma espécie de extensão maligna do Gwynplane de oito décadas antes.
Nas celebrações do 75º aniversário do homem-morcego, a figura do palhaço maligno não pode deixar de ser exaltada como uma das principais responsáveis pelo sucesso ininterrupto do alter-ego de Bruce Wayne. Mas, vale uma espiada nesse clássico no cinema mudo para refletir sobre a dor e a maldade que a “alegria” pode esconder.
[su_youtube url=”https://www.youtube.com/watch?v=L7NdMu4ZvvY”]