Atualmente, o cinema coreano produz os melhores exemplares de gênero
Estive essa semana empenhado em ver todos os filmes coreanos que foram exibidos na mostra de Cinema Coreano na Cinemateca Brasileira de São Paulo, durante os seis dias. Pude rever alguns e descobrir outros. Lá, como já era de se esperar, assisti todo o tipo de filme – zumbi, thriller político, vingança, policial, romance e filme de arte. Todos de uma qualidade ímpar, pouco visto hoje em grandes países por ai.
É difícil, hoje, você assistir um filme coreano ruim. Existe, mas é filho único de mãe solteira! Mesmo o Grande Chefe (2007), de Jeson Yun-su, que foi o filme mais “bobinho” entre os coreanos que vi em anos, ainda sim é bom – tem seus méritos e é divertido. O filme é uma espécie de Masterchef, o reality culinário, condensado em um único filme.
Desde 2003, quando Park Chan-wook lançou Oldboy (2003) e ganhou prêmio do Júri em Cannes, a visibilidade na chamada escola coreano foi aberta para o mundo. Com a obra-prima, Park mostrou ali a maior qualidade do cinema coreano de lá pra cá: as suas estórias e roteiros. Além disso, também a qualidade técnica precisa, moderna, atual e sem limites, para fazer um cinema inventivo, inteligente e intrigante em sua mise en scène.
De fato, a originalidade de seus roteiros e suas narrativas são a maior qualidade dessa safra; desta chamada “escola” ou “era de ouro” do cinema coreano. Fazem um cinema que contam grandes estórias, e em sua maioria são contos modernos e universais, despidos de dogmas ou preconceitos.
Um cinema puro, que não tem medo trabalhar com gênero ou subgêneros. Pode ser uma Invasão Zumbi à uma estação de trem, ou um padre que se transforma em vampiro; o importante aqui é contar uma boa estória e usar o melhor da linguagem do cinema para trazer o cinéfilo para a imersão da grande tela.
Com Park, descobrimos o cinema coreano. Vimos depois a afirmação de Joon-ho Bong de Okja (2017) e O Hospedeiro (2006), Jae-woon Kim, de A Era da Escuridão (2016) e Eu vi o Diabo (2010), Hong-Jin Na de O Lamento (2016) e O Caçador (2010), além do queridinho da crítica da atualidade, Sang-soo Hong de Certo Agora, Errado Antes (2016) e Na Praia à Noite Sozinha (2017), além de Ki-duk Kim.
Esse último, em particular, é o típico caso do “ame ou odeie”; casualmente, ele flerta com o cinema gênero – como o drama de horror Pietà (2012) – mas, de todos os mencionados acima, ainda é o menos prestigiado dentro do cinema coreano atual. Todos eles – com exceção talvez de Sang-soo Hong e Ki-duk Kim – procuram sempre trabalhar com o cinema por um viés de gênero, e raramente trabalham com o cinema dito arthouse. Park, por exemplo, tem sua trilogia da Vingança, mas já fez filmes de vampiro e suspense familiar.
Talentos sem fim
Mas, na opinião deste que vos escreve,o mais talentoso desta geração de ouro coreana – reconhecido inclusive com prêmios em Berlim e Cannes, entre outros festivais – é Joon-ho Bong, que tem pérolas como Memórias de um Assassino, O Hospedeiro e Mother – A busca pela vingança (2009). Com O Hospedeiro, ele chegou a ter a maior bilheteria da Coréia do Sul durante anos.
E ele também já nos brindou com um sci-fi no pós-apocalíptico O Expresso do Amanhã (2013); assim como Park, que adaptou Oldboy de uma manhwa (quadrinho coreano), Bong adaptou esse ótimo filme de uma graphic novel francesa. Essa dupla é talvez a mais talentosa do cinema coreano, tendo sido os primeiros dessa safra a tentar a sorte em Hollywood.
Lá, Park fez Segredos de Sangue (2012), um thriller sobre uma família disfuncional. Foi bem aceito pela crítica especializada, mas não deu muito retorno financeiro. Após realiza-lo, Park voltou para Coréia para lançar o recente e ótimo A Criada (2016).
Também tentando a sorte em Hollywood – e dando menos certo ainda – foi Jae-woon Kim, que fez um filme de ação com ninguém menos que Arnold Schwarzenegger, em O Último Desafio (2013) – que não foi muito bem nem de crítica e nem de bilheteria.
Jae-woon Kim é aquele que mais investe em diferentes gêneros, chegando a ter feito western de aventura em Os Invencíveis (2008), cuja direção e vários planos de câmera em sua perseguição no deserto nos dão a grande impressão de que veio a ser uma referência para George Miller em sua obra-prima Mad Max – Estrada da Fúria.
Além de se aventurar nesse gênero clássico americano, fez também filmes de vingança – como quase todos diretores coreanos atuais – e alguns filmes de horror como Medo (2003) e o já mencionado O Eu Vi o Diabo. Nessa mostra, ele nos trouxe seu mais novo filme, um thriller político de época chamado A Era da Escuridão.
A trama deste se passa em 1920, quando o Japão ocupa a Coréia e a China. Um agente do exército japonês nascido na Coréia fica em dúvida sobre qual lado deve defender: se se mantém honrado a pátria a que ele serve, ou ajudar seu compatriotas a mudar a estória de seu país natal. Aqui, Kim faz um thriller muito eficiente, só pecando por ser longo e um pouco previsível. Mesmo assim, mantém o alto padrão desse cinema coreano sobre o qual falamos até aqui.
Mas não seria exagero dizer que a nova safra vem sendo comandada pelo diretor de O Caçador, a obra-prima de estreia de Hong-jin Na – que é muito talentoso, porém demora para lançar filmes. De 2008 para cá, quando debutou em longas com o filme supracitado, ele realizou somente mais dois filmes: o explosivo suspense The Yellow Sea (2010) – que nunca foi lançado no Brasil, mas é um filmaço de tirar o fôlego; e o recente horror O Lamento, que, ao mesmo tempo que possui notas de cinema moderno, também trabalha o gênero clássico de horror, com uma atmosfera instigante e uma câmera que está sempre no lugar certo.
Com muito talento, e já angariando sucesso mundo afora, Sang-ho Yeon estreou nos filmes em com essa jóia chamada Invasão Zumbi, para muitos o melhor filme de zumbi em anos. Um filme muito atual, que descreve com precisão a jornada do herói, oferecendo redenção, um bom vilão, e os zumbis enquanto metáfora para o colapso da natureza.
Em uma leve crítica social – fazendo jus aos clássicos do mestre George Romero – ele mostra as minorias sendo deixadas para trás no trem e tendo que ser resgatados. Também fala sobre solidariedade e egoísmo, numa sociedade onde cada vez os seres humano pensam mais em si do que nos outros. No final, quem é salvo são justamente as pessoas que sempre pensaram nos outros durante toda a jornada do filme.
A Prisão (2017), do também estreante em longa-metragem Na Hyun, conta estória de um policial muito condecorado que, ao fugir de uma instituição mental, vai para uma prisão comum e lá descobre uma quadrilha de bandidos chefiada por um gângster que comanda todo o sistema carcerário da Coréia. Como o bom policial que é, precisa agir. Aos poucos, somos envolvidos em uma trama policial que faz jus aos cinema dos anos 80. Com uma linda fotografia e algumas reviravoltas, temos mais um grande filme de gênero.
Ainda reserva surpresas
Mas a grata surpresa dessa Mostra do cinema coreano foi Alice in Earsnestland (2015). Chama a atenção pela divertida, esquisita e boa estória desse também diretor estreante em longa-metragem, Gooc-jin Ahn.
O filme brinca com o clássico Alice no País das Maravilhas, mas é um filme totalmente único e corajoso. Soon-Am luta para pagar as contas do seu marido, que está em coma. Com isso, vemos uma personagem fazendo todo o possível para voltar a ter seu amor em casa – até apelar para violência. Em muitos momentos, vemos o sofrimento do personagem de Soon-Am e toda sua trajetória na sociedade coreana, que é criticada aqui como uma sociedade que exige muito do seu povo, de classes baixas aos assalariados.
A película lembra a sofrida Björk em seu personagem no também único Dançando no Escuro, de Lars Von Trier. A direção de arte, com cores fortes e vibrantes, chama bastante a atenção, além de sua linda direção de câmera e escolha de planos bem fora do comum. Uma experiência única, que também é um exemplar de gênero – mas se eu contar qual, talvez surpresas se percam. Vale a pena fazer tudo por amor? Até onde você iria por amor? Com direito até rap no final, o filme é insano!
Mas o grande destaque da Mostra – que também coroou seu encerramento, é mesmo a obra-prima grandiosa de Park Chan-wook, A Criada, que também conta a estória da ocupação japonesa, mas agora na década de 30.
Sookee é contratada para trabalhar para uma herdeira nipônica, Hideko, que leva uma vida isolada com seu tio autoritário. Mas o que Hideko não sabe é que Sookee está infiltrada para roubar seu tio. Só que as coisas não saem como o esperado, e as duas criam um amor entre elas. Um carinho fora do comum, que nos leva a um dos filmes mais belos dos últimos tempos.
Poucos cineastas conseguem filmar tão bem cenas de amor – principalmente de um romance lésbico -sem pudor, mas também sem exagerar no sexismo. Coisas que só o talento de alguém genial como Park para fazer, trabalhando a partir de um roteiro adaptado de um livro Inglês de Sarah Water. Trata-se de um filme tecnicamente impecável, com uma das melhores direções de fotografia dos últimos anos e também a brilhante direção de arte e figurino, que compõem o filme de maneira única – e que também tornam cada quadro do filme uma fotografia a parte.
A trama nos envolve como poucos filmes são capazes, deixando-nos intrigados a cada reviravolta; com vários pontos de vistas, ela te surpreende sempre a cada virada, e, mesmo tendo mais de duas horas de duração, não é entediante. Com bastante humor negro – marca registra em sua carreira – uma leve critica à sociedade japonesa, além de um adentro ao mundo dos fetichistas, Park trás novamente um filme-experiência que nos deixa perplexos e de boca aberta em seu grande final.
Melhor cinema da atualidade?
Creio que hoje o cinema da Coréia do Sul seja o que melhor sabe trabalhar com diversidade de gêneros e estórias, sempre de maneira muito eficaz e intrigante. Em um determinado momento, esse cinema de gêneros e subgêneros foi muito bem feito e representado pelos americanos e pelos italianos. Porém, infelizmente, hoje só vemos resquícios desses tipos de filmes nesses países.
Antes de encerrarmos, vale fazermos uma menção honrosa também ao talento da geração de atores que acompanha esses diretores, liderada por Kang-ho Song, de O Hospedeiro e A Era da Escuridão. Uma espécie de Ricardo Darin coreano, o cara está em vários desses filmes mencionados aqui, e sempre mostrando uma qualidade e diversidade gigantesca em seus personagens e atuações.
E uma ultima reflexão em um momento que temos cada vez mais mulheres na direção: ainda é raro achar diretoras no cinema coreano. Por onde andam elas? Dentro da qualidade dessa geração, só podemos imaginar o que a visão feminina desse povo pode oferecer em termos de cinema!
Para ajudar o amigo leitor a achar todas essas belas obras de arte, fizemos uma lista dos filmes mais relevantes dos cineastas aqui mencionados.
- Park Chan-wook : A Criada (2016), Gosto de Sangue (2009), Oldboy (2004)
- Joon-ho Bong : Okja (2017), Mother – A Busca Pela Vingança (2009), O Hospedeiro (2006) e Memórias de um Assassino (2003)
- Jee-woon Kim : A Era da Escuridão (2016), Eu vi o Diabo (2010) e Os Invencíveis (2008)
- Hong-jin Na : O Lamento (2016), The Yellow Sea (2010) e O Caçador
- Ki-duk Kim : Pieta (2012), Time – O Amor Contra a Passagem do Tempo (2006) e Casa Vazia (2004)
- Sang-soo Hong : Na Praia à Noite Sozinha (2017), Certo Agora, Errado Antes (2016) e O Dia Que Ele Chegar (2011)
- Je-kyu Kang : Salut D’Amour (2015), Mai Wei (2011) e A Irmandade da Guerra (2004)
Alguns outros que não foram mencionados mas que merecem uma espiada:
- Seung-wan Ryoo : O Veterano (2015), O Arquivo de Berlim (2013) e A Cidade da Violência (2006)
- Hoon-jung Park : Daeho (2015) e Nova Ordem (2013)
- Jeong-beom Lee : Assassino Profissional (2014), O Homem de Lugar Nenhum (2010) e Cruel Winter Blues (2006)
E você, amigo leitor? O que acha do atual cinema coreano? Não deixe de comentar e compartilhar o artigo!