Ao fim de março, o Brasil relembrou os 50 anos do início de um período sombrio para história recente do país. O golpe militar que suspendeu a democracia brasileira por 25 anos e instaurou a limitação das liberdades civis como política de estado, gera e continuará gerando controvérsias sobre os impactos sociais e políticos causados sobre uma nação acossada pela desigualdade e falta de perspectivas. Em contrapartida, o fato histórico é fonte inesgotável de boas ideias para o cinema nacional, gerando alguns interessantes filmes sobre a ditadura.
Não são poucos os filmes que retratam o período militar (1964-1985), geralmente focados na violência dos chamados “porões da ditadura”. O primeiro foi lançado ainda antes do retorno das eleições livres, com Pra Frente Brasil (1982), longa de Roberto Farias sobre a saga de uma família em buscas de informações sobre um homem comum confundido como subversivo pela polícia, sendo preso e torturado pela acusação. A obra retrata a violência e arbitrariedade do manto ditatorial e contou com a presença de atores célebres da televisão como principal motor de divulgação. O filme peca pela qualidade técnica, mas o pioneirismo de Farias abriu as portas da cinegrafia brasileira para algo impensado no recente ápice da censura: criticar, abertamente, o governo dos marechais. A partir daí, obras de diferentes graus de qualidade foram surgindo, com focos e abordagens distintas, levando-as às categorias de essênciais para se entender e refletir sobre o período, em especial para quem não vivenciou. Entre tantas, fica a dica de cinco importantes trabalhos sobre o tema, cada com um linha distinta de abordagem:
- Cabra Marcado Para Morrer (1984) – Eduardo Coutinho
A história desta produção é tão impressionante quanto o filme em si. Em 1964, o cineasta Eduardo Coutinho (falecido em fevereiro de 2014), filmava em Pernambuco uma ficção baseada na vida de João Pedro Teixeira, líder comunitário camponês na Paraíba. Durante as filmagens, a fazenda em que a produção era rodada foi cercada por policiais e parte da equipe foi presa e o material confiscado. Os trabalhos foram interrompidos sob a alegação judicial de “prática de incitação ao comunismo”. Em 1981, Coutinho recupera os negativos do longa e se compromete a concluir o trabalho iniciado 20 anos antes.
O que para muitos teria significado o fim de um sonho, o trauma de 64 serviu de combustível para Coutinho viajar de volta ao Nordeste e transforma sua obra de ficção em um documentário sobre a ditadura. A premissa era óbvia: o que teria acontecido àquelas pessoas que alimentavam de dados a produção nestas duas décadas de vácuo ditatorial? O reencontro com personagens, como a viúva de João Teixeira, é um dos marcos do cinema brasileiro. A peça de ficção se transforma em documentário sobre a transformação do Brasil sufocado pela mão de chumbo do governo, sobre o poder do tempo em cima de um povo esquecido. Cabra Marcado para Morrer também se posiciona como um divisor de águas no trabalho de Coutinho, considerado por muitos como um dos mais brilhantes documentaristas do mundo, que iniciava ali o estilo narrativo que o consagraria.
- O Que é Isso, Companheiro? (1997) – Bruno Barreto
Baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro? pode ser o mais fraco dos filmes desta lista, mas nem por isso deixa de ser menos relevante. A história gira em torno do notório sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick por guerrilheiros de esquerda do MR-8 e da Aliança Nacional, em 1969. Sem o comprometimento de ter uma fidelidade documental ao fato histórico, o filme se concentra nas relações sociais e psicológicas do jovem grupo de sequestradores que não sabe o que fazer com a grande oportunidade que conseguiram. O enredo não condena nem absolve completamente nenhum dos lados envolvidos, mostrando que a guerra corrompe até a mais nobre das causas. Apesar do tom folhetinesco, o filme envolve espectador com uma trama bem elaborada sobre um dos episódios mais célebres da ditadura militar, além de personagens que, embora às vezes tratados sem profundidade desejada – o alto número de papeis compromete esse objetivo – conquistam pela personalidade sensível sob a boa direção de elenco.
O longa de Bruno Barreto ganhou notoriedade pela indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1997, tendo forte apelo comercial sobre o elenco estrelado por rostos famosos nas novelas e programas de humor da TV Globo. Não há um só personagem do filme que não seja interpretado por atores conhecidos da televisão, contando, inclusive, com a ilustre, mas quase despercebida, participação de Fernanda Montenegro. A presença de nomes tão alinhados ao humor, como Fernanda Torres, Luis Fernando Guimarães e Pedro Cardoso nos papéis de personagens tão densos e dramáticos, no entanto, não compromete o resultado do longa, ao contrário, surpreende pelo bom talento desse time. Destaque para a contundente atuação de Matheus Nachtergaele no papel do Jonas, o obcecado líder da resistência que nada vê além da própria identidade como “antissistema”. Dinâmico, O que é isso companheiro cumpre bem seu papel de entretenimento, propondo uma reflexão sobre que até que ponto a violência justifica a si própria.
- O Ano Em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) – Cao Hamburguer
O Filme de Cao Hamburguer é um das mais belas e sensíveis produções brasileiras nos últimos anos. Ao retratar a repressão militar sob os olhos de uma criança, a obra vai fundo em um dos aspectos mais dolorosos da perseguição política: o drama das vítimas indiretas. A história gira em torno de Mauro, menino de 12 anos que mora com em Belo Horizonte até ser surpreendido com a notícia que passaria uma temporada na casa do avô, em São Paulo, enquanto seus pais tiram férias. Mauro é deixado na nova casa com uma pressa surpreendente para um casal que se demonstra tão amoroso, uma velocidade que não permite a ambos perceberem que algo está muito errado naquela casa, de uma maneira que mudaria a vida do filho, talvez para sempre. Delicadamente, os verdadeiros motivos do abandono de Mauro são apresentados, enquanto o garoto trava o duro e solitário caminho do amadurecimento.
O longa usa diversas alegorias para ilustrar as nuances do período turbulento. Morando agora no bairro do Bom Retiro, em meio a comunidade judaica, Mauro está em um mundo completamente avesso ao seu, de costumes e hábitos estranhos para ele, aumentando a sensação de deslocamento. Mas, como Mauro, não estaria o Brasil vivenciando um período de estranhamento, de afastamento de si próprio e mergulhado em uma era de incertezas? O ano em questão é 1970, auge da repressão oficial. O drama do garoto se passa às vésperas da Copa do Mundo de futebol, única paixão capaz de abstrai-lo dos infortúnios à sua volta. O futebol, tão amplamente utilizado à época – e até nos adias atuais – como propaganda nacionalista para anestesiar e desviar os olhos do povo ante os perigos vizinhos.
Habituado a falar com as crianças, Cao Hamburguer, do clássico infantil Castelo Ra-tim-bum, consegue imprimir sua sensibilidade como marca em um filme adulto e, ao mesmo tempo, familiar. Utiliza com maestria o recurso memorialista de resgate do lado inocente, feliz e despretensioso para quem viveu a infância durante o regime. Mostra o lado de quem não quer lutar, mudar, guerrear, mas, simplesmente, voltar à normalidade doméstica mesmo perante ameaças cada vez mais violentas. Trata-se de um filme de autor, onde a presença do diretor se faz nítida em cada cena, inclusive na excelente gestão de elenco, que consegue transmitir integralmente a atmosfera envolta em cada personagem. Vencedor e concorrente a vários prêmios internacionais, O ano…é, além de reflexivo, uma ótimo entretenimento, mesmo para quem não é ligado na própria história.
- Hoje (2011) – Tata Amaral
O quarto filme da diretora paulistana é uma angustiante viagem ao solitário mundo de Vera, personagem da sempre ótima – no drama ou na comédia – Denise Fraga. Claustrofóbico, Hoje mostra o quão pesado pode ser o fardo do passado. Vera acaba de se mudar para a sua primeira casa própria, um velho, mas amplo apartamento no centro de São Paulo. No dia da mudança, enquanto orienta dois prestativos entregadores na distribuição dos móveis, Vera recebe uma inesperada visita que lhe causa profundo impacto. Com uma abordagem introspectiva e reflexiva que lembra os textos de Clarice Lispector, quase todo o filme se passa dentro dos cômodos do apartamento, em um mesmo dia, com um reduzidíssimo número de personagens. A sensação de claustrofobia e desconforto aumenta a cada cena, frente ao desamparo da protagonista que luta para sobreviver em mundo que muito já a oprimiu.
Lentamente, vamos conhecendo mais e mais do presente e do passado dessa mulher de semblante triste e cansado, cujo olhar já demonstra um repertório de mágoas profundas. A começar, o dinheiro para a compra do imóvel foi resultado de uma indenização paga pelo governo após oficialização da morte do marido desaparecido durante a ditadura militar. Seria o fato da realização de seu grande sonho ser resultado de acontecimento responsável por tanta dor no passado, a causa da viagem memorialista? Quão dolorosa pode ser a culpa? A saudade? O terror da repressão ditatorial retorna com toda força quando Vera tem que enfrentar suas feridas mais profundas.
Ao oferecer uma linha teatral para ilustrar os momentos mais significativos dos profundos diálogos dos personagens principais, Tata Amaral aguça a sensação de incômodo que as tristezas ali relembradas causam nos envolvidos. A direção inteligente e sagaz, aliada a um roteiro não afeito aos maneirismos dos filmes sobre a ditadura tornam Hoje único, uma joia do cinema brasileiro recente. A leveza da interpretação de Denise Fraga e o distanciamento frio das pessoas a sua volta reforçam o peso dos traumas de Vera. Na tela, os anos de ditadura representa aquele mal que não morre, ou melhor, que nos persegue mesmo após morto.
- O dia que durou 21 anos (2012) – Camilo Tavares.
Por fim, um documentário de fato, na mais clássica raiz do termo. O Dia que durou 21 anos é das melhores obras jornalísticas sobre a ditadura militar nos últimos anos. O filme trata de um aspecto delicado da ditadura, ainda pouco trabalhado pela imprensa tradicional, mesmo que muito mencionado pelas mídias paralelas: a participação norte-americana no golpe de 64 e nos primeiros anos do regime militar. Apoio ocultado por anos pelo serviço secreto dos EUA, o vídeo mostra como o governo de João Goulart era visto como uma ameaça pelos americanos devido ao relacionamento com Cuba, pequena ilha caribenha que desafiou a superpotência vizinha ao abraçar o comunismo soviético.
O diretor Camilo Tavares foge do didatismo fácil da narrativa em off para deixar a construção da mensagem na alternância de testemunhas importantes do período com documentos e gravações inéditas, divulgadas após décadas protegidas nos arquivos secretos norte-americanos. A linguagem dinâmica e a trilha sonora envolvente fazem do longa uma obra extremamente interessante, que alimenta a curiosidade do espectador a cada depoimento e o surpreende sempre. Muitos fatos ali apresentados raramente haviam sido apresentados na historiografia oficial, como a denúncia de que o Brasil chegou a estar muito próximo de um conflito armado com os EUA, país em permanente alerta contra a influência comunista.
Apesar do viés esquerdista, O dia que durou 21 anos não é um filme-panfleto. A ideologia da produção se faz mais presenta nas questões levantadas do que na condução do filme em si. Há significativo espaço para as palavras de militares e norte-americanos, direta ou indiretamente, ligados aos acontecimentos apresentados. A relevância do tema proposto e a astuta direção de Tavares renderam a produção uma série de importantes premiações internacionais, como o de Melhor Documentário Estrangeiro do St. Tropez International Film Festival, na França, e os prêmios especiais do Juri no 22º Arizona International Film Festival e também no 29º Long Island Film Festival, ambos no próprio EUA. Um filme enxuto, mas riquíssimo de informações, daqueles que deixam um gosto de quero mais.