A Vigilante do Amanhã e o cyberpunk
Não é novidade que a ficção científica no cinema é um segmento onde vemos grandes ideias, porém, quase nunca bem trabalhadas. No caso do cyberpunk, subdivisão do gênero literário que surgiu no início dos anos 1980, caracterizado por sociedades decadentes onde o alto nível de tecnologia não garantiu uma vida melhor às pessoas, isso é ainda mais frustrante. Embora tenha um peso de verossimilhança evidente hoje em dia, quando esse tipo de história vai para as telas, o que a faz especial é ignorado. Quando A Vigilante do Amanhã: Ghost in The Shell (Ghost in the Shell) foi anunciado, ainda havia alguma esperança, pois com o mangá e o anime homônimo como fonte, a referência para aliar conteúdo a visual estava no nariz dos realizadores.
(Confira também o Formiga na Cabine sobre o filme)
Mesmo assim, este não deixou de ser um exemplo de como a indústria continua a subestimar seu público. Como no caso dos rip-offs (se não conhece o termo, dê uma olhada neste texto enfocando Star Wars), que entendem erroneamente que o sucesso por trás de qualquer filme é o que sua superfície tem de mais visível, este A Vigilante do Amanhã faz a mesma coisa enquanto adaptação. E olha que profundidade não falta ao mangá criado por Masamune Shirow (confira esta análise e estas referências literárias).
Em uma metrópole super-futurista multicultural, com traços japoneses mais evidentes, os aprimoramentos físicos cibernéticos são populares e uma moda entre a população. A Seção 9 é a polícia local, contando com a Major Mira Killian como líder de campo. Vivida por Scarlett Johansson, o filme nos apresenta a protagonista como um salto tecnológico dentro deste contexto, pois ela foi salva da morte ao ter seu cérebro transplantado para um corpo totalmente artificial projetado para sua função. Sem muito interesse sobre sua vida antes do incidente, ela aceita a versão oficial e segue sua vida.
O incidente que desencadeia a trama é o assassinato de executivos da Hanka Robotics, corporação líder no mercado de aprimoramentos cibernéticos, cuja influência vai muito além da economia. Enquanto a Major começa a ter estranhas alucinações, o responsável pelas mortes, auto intitulado Kuze, continua sua cruzada, invadindo sistemas e controlando tudo à distância. A investigação vai revelar detalhes sujos da Hanka e levar nossa heroína a procurar sua verdadeira origem. A última frase foi apenas para confirmar a obviedade desta trama, pois aposto que você já tinha intuído esse caminho.
Projeto em mãos erradas
Pois bem, a crise de identidade da Major, em essência, lembra a de Alex Murphy no Robocop original, mas não espere a mesma sutileza. A ideia de entregar uma premissa como essa, com tanto potencial para densidade conceitual, aos roteiristas Jamie Moss e William Wheeler, ambos iniciantes no que diz respeito a longas para o cinema, cobra um alto preço.
Os dois não foram capazes de construir algo que fosse além de cenas de ação e revelações vazias sobre a Major, Kuze e a Hanka. Muito pior do que isso é enfiar uma mensagem rasa, com pretenso fundo filosófico, como uma espécie de chamado à jornada heroica da protagonista. Coroando as escolhas preguiçosas, um vilão que é o mal em pessoa, disposto a matar todo mundo com as próprias mãos, mais coincidências com ligações óbvias e ingênuas entre personagens.
Sobre a direção de Rupert Sanders (de Branca de Neve e o Caçador), outra contratação arriscada, já que este é o seu segundo longa e o anterior não é especialmente notável, não há o que elogiar, pois o cineasta não se mostra muito inventivo. As cenas de ação, que poderiam valorizar o resultado final, tem seus melhores momentos nas sequências em câmera lenta que já vimos nos trailers. Mesmo ali, era impossível não lembrar de Matrix, ironicamente, um filme que bebe muito do anime de Mamoru Oshii.
Fora isso, Sanders abusa das tomadas aéreas, sempre martelando na cabeça do espectador que estamos em uma cidade mega futurista com publicidade agressiva. Se ele tivesse assistido a O Teorema Zero, perceberia que há formas mais sutis de se passar essa ideia.
Ainda tem lá suas qualidades
A Vigilante do Amanhã, pelo menos, não tem cara de metido a épico, até pela sua duração modesta de 107 minutos. Apesar das fontes cabeçudas que o originaram, parece que a ideia foi simplesmente entregar um filme de ação com embalagem sci-fi. Não que isso sirva para redimi-lo, mas ajuda dependendo da expectativa de quem o encara. Se Sanders mostra a deficiência narrativa comum aos profissionais egressos da publicidade, o ritmo se sustenta na escalada de eventos. Isso, mais a duração, evita que a experiência seja de todo desagradável.
Sobre o elenco, Scarlett Johansson não tem muito que fazer com o texto e com um papel físico como esse. Entre os inevitáveis coadjuvantes de luxo, Juliette Binoche, como uma previsível cientista boazinha em um conflito entre o dever e a consciência, apresenta a competência de sempre, mas merecia algo mais. Destaque para a participação de Takeshi Kitano como o chefe da Seção 9, que, mesmo sem muita serventia dentro da trama, traz um pouco de charme à produção.
Outro acerto é o trabalho de Clint Mansell na trilha sonora. Parceiro habitual de Darren Aronofsky (ouça este podcast sobre a filmografia do diretor), ele entrega temas com personalidade dentro da proposta conceitual. Não é o melhor trabalho dele, claro, mas destaca-se bem dentro do conjunto irregular, valorizando o filme em uma visão geral.
A Vigilante do Amanhã: Ghost in The Shell dificilmente não será uma decepção para quem conhece e aprecia o material original, ou quem espera uma ficção científica decente. Tem a chance de divertir outro tipo de público, mas, mesmo para esta plateia específica, é só mais um entretenimento descartável.