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ENTRE VALES exibe poder devastador da perda do próprio eu (Estreia em 08/05/2014)

Antonio é um catador de lixo calado e desinteressado pelo mundo ao redor. Vicente é um empresário, pai de família e na expectativa de um novo negócio. As histórias de ambos são contadas em paralelo, caminhando juntas para o inevitável encontro. A expectativa desse cruzamento existencial é a premissa inicial de Entre Vales, uma das principais estreias do cinema nacional neste final de semana, mas não é o mote que move o filme, como logo percebe o espectador.  Antonio e Vicente são o mesmo homem em momentos distintos da vida, no entanto, separados apenas por poucos, mas marcantes dias.

Ao contrário do que pode parecer, Entre Vales não é uma obra sustentada em dicotomias como pobreza/riqueza ou luxo/lixo. É uma metáfora sobre dor, desapego e perda, tendo no lixo a principal referência visual. Vicente é sócio de uma empresa responsável por implantar e administrar aterros sanitários que acaba de fechar um novo negócio. É casado com a dentista Marina e pai do amoroso menino Caio. No entanto, não é feliz. Vive uma amargura que vai além do casamento desgastado e dos imprevistos profissionais, tendo, no filho, a única tentativa de manter uma vã integridade afetiva. A criança e o trabalho são os únicos elos do empresário consigo mesmo, dedicações fundidas na alegoria da construção de uma maquete.

No paralelo, Vicente se movimenta em meio ao entulho do lixão que um dia tentou transformar num aterro. Entre poucas palavras, identifica-se apenas como Antonio, como se já estivesse de uma vez por todas apagada a identidade de outrora. Trabalha intensamente, porém sem ver nada a sua volta além do lixo, não se importando, até mesmo, com a própria segurança. Um homem indiferente a própria humanidade. Mais do que a dúvida sobre o que leva um homem rico à extrema pobreza, a grande questão de Entre Vales está na fragilidade psíquica do ser humano frente às perdas da vida, capaz de impulsionar uma trajetória de decadência íntima paralisante.

Sob a batuta do humanista Philippe Barcinski, Entre Vales tem entre os destaques o talento de Ângelo Antônio, que entrega ao protagonista uma atmosfera angustiante de impotência contra a própria vida. Sua intepretação é contida e enxuta que, apesar de as vezes aparentar um indevido distanciamento, reforçam os conflitos pessoais do personagem, sobretudo nos momentos de lixão.   Melissa Vettore também faz um belo trabalho no papel da infeliz esposa Marina. Convidado especial, o ator uruguaio Daniel Hendler, porém, tem atuação discreta.

A primorosa, mas intencionalmente incômoda fotografia de Walter Carvalho, alterna imagens de campos abertos com planos fechados que reforçam a ideia perturbadora do lixo como montes de restos daquilo que um dia teve uma existência, incluindo aí quem dele vive. O roteiro, assinado pelo próprio diretor e pela esposa Fabiana Werneck Barcinski, embora seja o ponto do fraco do filme ao se tornar previsível em muitos momentos e insuficiente em diálogos e situações-chave, é sábio ao construir a trama como quebra-cabeça sobre o declínio do personagem.

Entre Vales é uma co-produção de Brasil, Uruguai e Alemanha, sendo rodado no polo cinematográfico de Paulínia e cooperativas de reciclagem e aterros sanitários de São Paulo e Rio de Janeiro. Foi vencedor do II Concurso Itamaraty para o Cinema Sulamericano em 2012 e do prêmio do público no 8º Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo, em 2013. Não é um marco do cinema brasileiro, mas um belo exemplo de que o Brasil é capaz de produzir bons filmes existencialistas, alheios aos dramas urbanos ou comédias rasas. Não é uma obra-prima, mas vale o ingresso. Uma oportunidade para pensar até que ponto de pode descer quando não há mais nada a que se segurar.

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