Brian K. Vaughan é um cara legal. Marcos Martín também. Longe das amarras do ciclo industrial de produção das grandes editoras dos EUA, os dois tiveram uma ideia bastante ousada para a distribuição de um trabalho autoral em quadrinhos. Através da página panelsyndicate.com são distribuídos os volumes de The Private Eye, que Vaughan escreve e Martín desenha. Dentro do site, o usuário pode selecionar o número que quiser, o quinto foi o último lançado, e através de pagamento via PayPal, digitar qualquer valor para liberar o download do arquivo. Sim, qualquer valor que você puder ou achar adequado. Embora os autores recomendem o valor mínimo de U$ 0,99, até os menos abastados no momento, ou aqueles sem conta no serviço de transferência de valores, também podem ter acesso ao quadrinho, pois mesmo preenchendo o espaço com 0, o download é liberado! Se parece loucura, não termina aí. Até agora, os três primeiros números contam, além do inglês original e espanhol, com tradução oficial em português, feita pelo editor da Panini Fabiano Denardin, com o jornalista Érico Assis. Ainda existe a escolha do formato do arquivo baixado, entre PDF, CBR ou CBZ. A continuidade e regularidade da série dependem do valor arrecadado, pois tudo o que entra é destinado a isso.
Um empreendimento desse tipo não soaria estranho se fosse propriedade de artistas iniciantes ou desconhecidos, o que realmente não é o caso aqui. Brian K. Vaughan é um roteirista de quadrinhos bastante conceituado no meio, tendo na bagagem séries como Y – O Último Homem, Ex Machina, a história fechada Os Leões de Bagdá e, mais recentemente, o premiadíssimo Saga. Escrevendo e produzindo para a TV, foi um dos roteiristas de Lost entre a terceira e quinta temporadas e responsável pela adaptação de Under The Dome, de Stephen King. Marcos Martín é um desenhista espanhol, ganhador do prêmio Eisner, com vários trabalhos publicados entre Marvel e DC. Trabalhou com os personagens de primeiro escalão das duas editoras, como Homem- Aranha e Batman. Seu traço estilizado foi descrito pela Entertainment Weekly como “mágico”.
Chegando agora ao ponto principal, The Private Eye, não é apenas uma história qualquer que poderia estar impressa no formato padrão. Em primeiro lugar, se você tem dúvidas quanto a experiência de consumir quadrinhos digitais, talvez essa obra possa terminar com seu receio. As páginas não estão na posição “retrato” dos gibis impressos comuns, mas em “paisagem”. Isso faz todo sentido se considerarmos que alguém pode querer ler em um monitor widescreen, pois poderá visualizar a página inteira na tela, com um tamanho razoável. Mesmo em um tablet – preferencialmente de 10 polegadas – o formato também é bastante apropriado pela forma como nos acostumamos a segurar o aparelho para visualizar páginas na internet ou assistir a um vídeo. Também se cria um interessante desafio narrativo para a dupla criadora, pois toda a lógica de se pensar a diagramação e a dinâmica muda, e os dois se saem muito bem.
Imagine um futuro, cerca de 70 anos à nossa frente, em que a internet não existe mais. Para muitos, isso já parece assustador, mas a contrapartida é que o que passa a ser realmente valorizado pela sociedade é a privacidade do cidadão. O conceito agora é considerado sagrado ao ponto de ser permitido – e comum – que as pessoas utilizem máscaras e identidades secretas. O papel da polícia na investigação de crimes é agora exercido pela imprensa, e a violação do direito ao anonimato do cidadão é punido com rigor. Isso faz com que os paparazzi sejam considerados um tipo rasteiro de criminoso, mas em mais uma subversão dos nossos conceitos, eles agora atuam como detetives particulares. É nesse cenário que um deles é contratado para um serviço, mas acaba enrolado em uma trama muito maior do que imaginava e – relutantemente – tem que seguir as pistas até solucionar definitivamente o caso.
É perceptível que esse breve resumo, mesmo sem entregar quase nada, parece um genérico de vários filmes noir. Foi exatamente essa a intenção de Vaughan; criar uma história de detetive nos moldes antigos, porém ambientada em um futuro virado ao avesso. As referências, além da trama, se mostram na presença inevitável de uma femme fatale, na personalidade do protagonista e em seu escritório, que tem uma disposição de móveis bem característica. Deixando a homenagem mais explícita, esse mesmo escritório tem na parede pôsteres de dois filmes noir famosos; Alma em Pânico (Angel Face), de 1952 e Relíquia Macabra (The Maltese Falcon) de 1941. Existem muito mais coisas espalhadas, principalmente entre os livros e discos de vinil do personagem.
Outro detalhe bastante estimulante ao acompanhar a HQ, é que estamos bastante acostumados à literatura de ficção científica distópica, há muito tempo se ocupando de visões do futuro em que a vigilância extrema e invasiva tornou a vida das pessoas um inferno. O exemplo mais famoso é 1984, mas esse tipo de história é explorada desde sempre em várias mídias. Em mais uma inversão inteligente do roteiro, The Private Eye, vai na exata contra-mão dessa ideia, mostrando o paroxismo da privacidade garantida a cada pessoa. Parece que a banalização da vida privada, que vivemos em tempos de smartphones e Big Brother, é realmente algo que preocupa o roteirista e co-criador da série, daí a qualidade textual.
Sobre a arte, Marcos Martín foi vitorioso ao conseguir dar vida a esse mundo tão estranho. Tanto em planos gerais, diálogos ou cenas de ação, seu estilo se mostra à altura da tarefa desde a sequencia de abertura, com uma perseguição tipicamente exagerada, mas muito crível, daquele tipo que só é possível nos quadrinhos. O traço limpo e estilizado, mais a narrativa de Martín são suportes perfeitos para o roteiro de Brian K. Vaughan. Sobre a cor, o desenho encontrou seu par perfeito na paleta da colorista, também espanhola, Muntsa Vicente. Longe de criar um conflito com o detalhismo do lápis, a colorização é simples, mas muito eficiente, trabalhando muito bem os contrastes entre objetos de cena e personagens.
Com um plano de concluir a história toda em dez volumes, só resta esperar que todos paguem pelos seus arquivos, assegurando os próximos, pois já chegamos à metade. Isso mostra que a forma de distribuição é viável e pode ser uma alternativa tanto para veteranos em busca de mais liberdade, quanto para escritores e artistas em início de carreira. Para que isso dê certo, a única coisa indispensável é a qualidade do material. The Private Eye é uma história que subverte conceitos, fazendo isso até mesmo em sua forma de chegar ao leitor. Provavelmente fará de novo, caso os criadores ouçam alguns de seus fãs e lancem uma versão impressa depois de concluída no formato digital. Se o futuro é esse, que venham logo mais quadrinhos desse nível. Estamos prontos!