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Steven Universe – As importantes e sutis lições da animação!

Steven Universe: a animação mais consciente que o Cartoon Network já produziu?

A princípio, parece ser só uma animação sobre alienígenas-minerais que decidiram morar na Terra, na cidade litorânea de Beach City, e cuidar de um inusitado garoto meio humano, meio gem. Então, poucos episódos nos mostram que é a relação entre irmãs mais velhas e irmão mais novo que sustenta a série – o que a criadora de Steven Universe, Rebecca Sugar, confirma. E aí, como se o tema do vínculo familiar não bastasse, a animação traz uma porção de camadas e comentários profundamente sensíveis à realidade de seus espectadores.

Steven Universe: a animação mais consciente que o Cartoon Network já produziu?

Steven Universe!

Que espectadores são esses? Bem, o Cartoon Network há muito tem provado que seus desenhos animados podem atingir públicos de idades diversas. E nem estamos falando das produções do bloco Adult Swim. É só tomar como exemplo Adventure Time (que, não por acaso, teve a colaboração de Sugar por anos). Ou, lá no começo dos anos 2000, Meninas Superpoderosas e Samurai Jack.

Ainda assim, espera-se que alguns desses desenhos deem conta de comentar o momento que vive o público jovem, de modo que o grupo se identifique com o que assiste e, quem sabe, alguma coisa se discuta no processo.

Eu disse “alguns desses desenhos” porque há aqueles geniais por mais que não digam muito sobre ser jovem, reconhecer a si mesmo e o mundo que nos cerca. Entre favoritos pessoais, citaria Billy e Mandy, Flapjack, Bob Esponja (da concorrente Nickelodeon)… A lista iria longe.

A questão é: se um desenho assume para si a responsabilidade de dialogar mais profundamente com seu espectador, como isso se dá?

Sempre vale a pena retomar Doug (da Nickelodeon, porque a fase Disney não chega nem aos pés). Divertidíssimo e muito consciente de como a pré-adolescência e o entorno social podem nos apertar. Hey, Arnold! também investiu em algo do tipo, talvez de forma mais maleável.

Steven Universe, por sua vez, vai um tanto mais fundo – ao mesmo tempo em que o faz de forma bastante sutil e abrindo diversas interpretações para assuntos que muita gente trataria de forma engessada e panfletária. E a ideia deste artigo é discutir como.

Se você já conhece Steven Universe, sabe bem do que estamos falando. Caso nunca tenha assistido, dá para ter uma noção de como funciona lendo isto aqui. Mas note: os comentários sociais são apenas uma camada (importante) na série. Se você só tiver interesse nas porções aventureiras e cômicas da animação, Steven e as Crystal Gems continuam sendo uma ótima pedida. O caso é que este artigo não pretende ir por essas bandas. Combinado?

Os tempos são outros

Vale começar lembrando que, originalmente, as gems são uma espécie alienígena dividida em castas, que destrói outros planetas sem muito escrúpulo. As Crystal Gems, por outro lado, são o grupo que começou uma rebelião no planeta Terra, em oposição à destruição que o Homeworld, sua terra natal, pregava.

Ou seja: as Crystal Gems desafiam o sistema tradicional de sua espécie. Rose Quartz, “falecida” líder original do grupo, viu valor nos seres humanos e veio a se apaixonar por Greg Universe, com quem teve Steven – um mestiço, afinal. Pérola renegou o destino serviçal de sua casta, se tornando a mais perfeccionista e cerebral da equipe. Ametista gosta de hábitos humanos que gems dispensam, como se divertir, comer, dormir e bagunçar. E Garnet merece toda uma atenção, que comentaremos mais adiante.

E outra: as Crystal Gems são imigrantes. Vejam, não é que qualquer história de alienígena residente na Terra faça um comentário sobre migração. Mas Steven Universe é muito certeiro nisso, ciente de nosso contexto, com tensões nacionalistas e crises de refugiados estourando mundo afora. O episódio “Rocknaldo” (temporada 4, episódio 18) escancara de vez o tema: o humano Ronaldo, fã de teorias conspiratórias, resolve parar de acusar as gems de trazer problemas para Beach City e passa a militar por elas (o que elas próprias nunca tiveram que fazer, já que se dão bem com a maioria da cidade).

Steven Universe: a animação mais consciente que o Cartoon Network já produziu?

Ronaldo tentando dizer a Steven como as Crystal Gems devem agir, no episódio “Rocknaldo”.

É aí que o episódio dá a chance de perguntar: será que ele escuta o que elas próprias têm a dizer? Ele não estaria roubando o espaço delas, apesar de bem-intencionado? Assim, não só a série comenta a integração dos diferentes como debate questões de lugar de fala e de empatia.

Por falar em empatia

Steven tem como arma principal um escudo. Consegue também conjurar uma bolha protetora e envolver outras pessoas nela. Tem propriedades de cura. Quer dizer, é o elemento de defesa e healer do grupo, o que já não é muito convencional para um protagonista.

Mas, para além de toda a parafernália fantástica, heróis costumam ter poderes realistas que se sobressaem – normalmente, no intuito de inspirar a audiência. Afinal, Harry Potter sobreviveu a Voldemort por causa do amor de sua mãe e Frodo chegou a Mordor com sua força de vontade e a parceria de Sam. Da mesma forma, o grande poder de Steven é a empatia.

Garnet, Ametista e Pérola são frequentemente convencidas a enxergar as situações de outra forma por insistência de Steven. A princípio, pode ser irritante até para o espectador. Por que diabos esse moleque fica entrando no meio, inventando moda, se elas são muito mais experientes e fortes que ele? Porém, pouco depois, sempre se revela que Steven ousou encarar a situação por um novo ângulo.

Um ângulo não necessariamente seu, mas do outro, do desconhecido. Foi assim, por exemplo, que as Crystal Gems compreenderam que os monstros que combatem são, na verdade, outras gems, corrompidas depois de um ataque misterioso que o próprio Homeworld lançou. Se Steven não tivesse ousado dar uma chance aos monstros, talvez nunca se descobrisse a verdade.

Além disso, em desdobramentos sobrenaturais dessa empatia, Steven já foi capaz de acessar o campo emocional e psicológico de outros personagens.

Porém, essa postura não quer dizer que Steven seja inabalável ou se sujeite a qualquer coisa. O personagem tem seus próprios conflitos, limitações e imprudências. Vale destacar aqui a forma como se relaciona com o passado de sua mãe, Rose, que nunca veio a conhecer. Todos insistem em lhe contar sobre a pessoa incrível que ela foi, e Steven sente o peso desse legado. Mais adiante, descobre que sua mãe talvez não tenha sido tão imaculada assim, e eis que aquele peso muda de tom – sem deixar de pesar, enfim.

Entre valores e crises pessoais, não falta tridimensionalidade aos personagens. Do perfeccionismo de Pérola ao complexo de inferioridade de Ametista, entram em cena noções com as quais podemos nos relacionar imediatamente – e referências especialmente importantes para o público jovem.

Assumindo essa responsabilidade, a série se destaca de vez quando Connie (par romântico de Steven e parceira de batalhas) tem problemas para se concentrar e experimenta crises de ansiedade – no episódio “Mindful Education” (temporada 4, episódio 4).

Esse tipo de transtorno não é sequer mencionado pelos personagens. Garnet simplesmente se ocupa de propor a Connie e Steven formas de se tranquilizar, com uma das canções mais emblemáticas do desenho, “Here Comes a Thought”.  A animação traz metáforas engenhosas e o resultado é invejável – além de embasado em técnicas reais de combate a ansiedade e depressão.

(Videoclipe da canção “Here Comes a Thought”, com suas borboletas metafóricas – em inglês).

Fusões e relacionamentos

Logo cedo, os espectadores descobrem que as gems podem se fundir entre si, formando uma nova e mais poderosa entidade. E se essa ideia parece roubada de Dragon Ball, vejam nisso uma homenagem bem consciente, já que Steven Universe não poupa referências ao mundo dos animes (de Utena a Evangelion).

A questão é que as fusões só funcionam direito se houver sintonia entre os indivíduos em questão. E é aí que a série cria uma ótima metáfora para relacionamentos em geral.

Não há exemplo melhor que Garnet. A personagem pode se fundir com outras, claro, mas ela é uma fusão em si: entre uma Safira (casta diplomática de clarividentes) e uma Rubi (casta de soldados). A sintonia entre ambas é tamanha que sua fusão quase nunca se desfaz.

Ocorre que essa fusão permanente é vista pelas gems do Homeworld como uma aberração. Para as gems tradicionais, a fusão é apenas uma estratégia de batalha, e não uma demonstração de afeto. Na verdade, o afeto em geral não é exatamente valorizado entre elas, mas a questão aqui é outra. Garnet incorpora o seguinte conceito: há relações que a sociedade nem sempre compreende.

Não é fácil resumir a questão de gênero e sexualidade aplicada às gems, então vamos deixar essa treta para a próxima. O que está bem claro é que todas as gems são personagens femininas, inclusive Safira e Rubi. Novamente a série não sai panfletando nada; o termo homoafetividade não consta nos diálogos. Mas aqui, no mundo dos espectadores, tudo isso é no mínimo análogo a um relacionamento entre duas mulheres.

Fusões à parte, a série nos diz que as relações humanas são complexas e que vale a pena reconhecer e conversar sobre isso. Connie precisa lidar com as rédeas curtas que a família impõe; Pérola é assombrada pela ausência de Rose; Ametista e Greg têm assuntos mal-resolvidos e ignorados por anos… E há, claro, os eventos entre Lapis Lazuli e Jasper.

 O lado feio da coisa

No primeiro grande embate com as Crystal Gems, a vilã Jasper se funde com Lapis Lazuli, uma gem cujas intenções ainda não estavam tão claras. As duas se tornam Malachite, que parece poderosa o bastante para dar uma sova em todo mundo. Porém, o que Lapis realmente pretendia era usar seu controle sobre as águas e aprisionar a fusão Malachite no fundo do mar.

Tempos depois, a série explora o conflito interno de Malachite, com a porção de Lapis lutando para mantê-la isolada no oceano e a porção de Jasper tentando tomar o controle. Jasper acaba vencendo e conduzindo Malachite a um novo confronto com as Crystal Gems. Basta resumir que Malachite é vencida, a fusão se desfaz e Jasper desaparece.

Jasper retornaria somente no episódio “Alone at Sea” (temporada 3, episódio 15). Nele, a vilã rastreia e reencontra Lapis. Leia o diálogo entre elas e adivinhe o comentário social embutido na cena.

Jasper: Vamos ser Malachite de novo.

Lapis: Por que você quer isso?

Jasper: Eu estava errada sobre a fusão. Você me fez compreender. Malachite era maior e mais forte que nós duas. (…)

Lapis: Eu fui terrível com você. Eu gostei de descontar tudo em você. Eu precisava. Eu odiava você. Era ruim.

Jasper: Vai ser melhor desta vez. Eu mudei. Você me mudou. Eu sou a única que consegue lidar com seu tipo de poder. Juntas, seremos imbatíveis.

Lapis: Não!

Jasper: O quê?

Lapis: O que tínhamos não era saudável. Nunca mais quero sentir o que sentia com você. Nunca mais. Então apenas vá.

(Cena do episódio “Alone at Sea”, na qual Jasper localiza Lapis para discutir sua fusão – em inglês).

Acertou quem respondeu “relacionamento abusivo“. Pesquisadores apontam fases típicas dessas relações nas quais são comuns chantagens emocionais e acusações como “ninguém mais aturaria você, só eu”. O tema é tremendamente complicado e merece mais atenção do se que pode dar aqui; tem fundamento acadêmico e não se trata de achismo ou vitimismo, como alguns gostariam de simplificar. Apenas notem como a própria série reconhece as nuances dessas dinâmicas e as diferentes perspectivas em jogo. Isso não é fácil de se conseguir.

 Não é para qualquer um

Entre outras formas de violência, até mesmo o direito de tirar a vida alheia entra em jogo. Mais de uma vez. E entre personagens ditos bonzinhos. Há causas tão justas que validem assassinatos – ou despedaçamentos, no caso das gems? Uma pessoa essencialmente amável é capaz de matar alguém?

Não são questões simples. Os eficazes Doug e Hey, Arnold!, por exemplo, nunca chegaram tão além assim. Adventure Time faz, sim, seus ótimos comentários sociais, mas a piração generalizada não amenizaria o peso de muitos desses debates? Mesmo se considerarmos o universo dos animes que o próprio Cartoon Network já exibiu, não é bem a mesma coisa (até porque nem tinha muito o que se discutir a cada uma das várias mortes de Kuririn, por exemplo).

Steven Universe consegue puxar para si uma tremenda bucha com segurança, sutileza e propriedade invejáveis. Tem, sim, uma atmosfera de delicadeza e fofura que pode afugentar alguns, de tão açucaradas. Mas, se você não for diabético e estiver disposto a dar chance a alguns episódios, pode encontrar um desenho animado desses que define sua geração.

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