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Tungstênio – Um microcosmo regional que reflete o macro!

Tungstênio retrata a realidade conturbada de um microcosmo

Todo ser humano que vive em sociedade possui um padrão de fábrica em relação à ética e às boas práticas. É claro que determinadas circunstâncias e cenários acabam deslocando essa barra para um lado ou para o outro, mas é inegável que existe um meio de campo comum a todos. Mesmo assim, todos nós – repito, todos nós – nos damos o direito de, vez ou outra, agir fora desse espectro. Óbvio que nossa consciência sempre busca alguma justificativa, de modo a tornar essa fuga aceitável, mantendo nosso ego ileso e pueril. Mesmo sabendo, lá no fundo de seu caráter anestésico e temporário. Tungstênio retrata a realidade conturbada de um microcosmo que é regido não por esse modelo padrão, mas sim pelos pequenos detalhes originados dessa rebeldia, que fogem um pouco desse status quo considerado aceitável. Mesmo que tenham suas desculpas.

Tungstênio, de Marcello Quintanilha, é mais um belo exemplar do quadrinho nacional!

Tungstênio, de Marcello Quintanilha

Escrito e ilustrado por Marcello Quintanilha, publicado em 2014 pela Editora Veneta, Tungstênio se passa ao longo de um dia no litoral baiano e acompanha, basicamente, quatro personagens que têm seus conflitos iniciados a partir de um evento criminoso na enseada, envolvendo um método de pesca ilegal. Mesmo que a tensão gerada a partir da circunstância criminal inicie e pontue a narrativa em vários momentos, a história nos serve muito mais como um estudo de personagens do que a resolução de um problema. Por isso, falar mais da sinopse pode atrapalhar um pouco sua experiência, caso ainda não tenha lido o quadrinho.

O ser humano como ele é

Assim como os excelentes trabalhos posteriores, o perturbador Talco de Vidro e o incisivo Hinário Nacional (que também ganhou um Formiga na Tela), Quintanilha despe o ser humano sem nos poupar de eventuais constrangimentos para com nossa espécie. Não existe herói ou vilão, santo ou pecador. Todos possuem capacidade para o bem e para o mal, e normalmente as ações ficam transitando entre esses dois mundos sem nenhuma fronteira muito clara.

A verdade é que o autor tira o véu, já tênue, que cobria seus personagens e joga suas características mais ególatras ao longo das páginas. Mas, veja bem, isso não quer dizer que o mundo é um lugar sujo e seus habitantes tão imundos quanto seu habitat. Significa apenas que somos falhos e tais falhas podem gerar consequências drásticas. E ninguém escapa. A sutileza da obra mostra claramente que qualquer um pode ser o estopim para uma tragédia ou para um evento edificante e benéfico. É a Teoria do Caos em sua mais pura essência.

Tungstênio, de Marcello Quintanilha, é mais um belo exemplar do quadrinho nacional!

Um dos pontos mais fortes da HQ é o caráter regional da obra. Por meio dos cenários, dos costumes, do linguajar e até do biotipo dos personagens, nos sentimos no litoral baiano sem grandes esforços. Quintanilha consegue empregar características tão ricas na história que nenhum estereótipo é necessário – mesmo para aqueles que nunca visitaram essa região. Mas, de nenhuma forma esse caráter regionalista exclui o poder da narrativa para quem não faz parte do contexto retratado pois, novamente, o autor fala sobre o ser humano, criando um fator de identificação que abrange todos, pelos menos a maioria, ao redor do globo terrestre. Tudo isso torna Tungstênio uma verdadeira aula para artistas que empregam esse caráter em suas obras, independentemente da mídia. Quem dera se alguns cineastas, brasileiros e estrangeiros, conseguissem retratar com tamanha fidelidade um local e seus moradores, fugindo dos empobrecedores clichês.

Outro elemento muito bem usado no quadrinho é a montagem paralela. Mesmo tendo diversas linhas narrativas intercaladas, em nenhum momento o leitor se perde com relação à noção de tempo e o ritmo, imposto de forma natural, ajuda a dar peso ao drama dos personagens. Mesmo que a trama se passe em apenas um dia, conseguimos saber do passado de seus personagens e imaginar seu futuro. É claro que alguns flashbacks ajudam a situar o leitor, mas a sapiência dos diálogos e a própria concepção visual dos protagonistas já dão conta de enriquecer o desenvolvimento.

Tungstênio, de Marcello Quintanilha, é mais um belo exemplar do quadrinho nacional!

A narrativa de Marcello Quintanilha

Sobre a arte, Quintanilha mostra total domínio da linguagem. A fisionomia dos personagens e os enquadramentos são extremamente competentes e objetivos. Em nenhum momento vemos alguma prepotência na diagramação ou nos desenhos, o que que ajuda o leitor a se manter imerso na história que, mesmo sendo mais sobre personagens do que sobre a falha trágica, ainda assim instiga para a resolução da trama. Muito bem vindo para qualquer arte sequencial, independente da natureza do gênero.

Entretanto, Tungstênio apresenta alguns problemas de ritmo lá pelo segundo terço da história. A trama se arrasta um pouco e alguns acontecimentos não causam grandes modificações na linha já estabelecida. Nada que estrague a experiência da leitura, mas não deixa de ser uma pequena pedra ocasional em um calçado confortável.

Este é outro ótimo trabalho de Marcello Quintanilha, autor que prova novamente que o cenário brasileiro possui artistas de qualidade na nona arte. Colocando o leitor dentro de um microcosmo que têm seus reflexos no macrocosmo tipicamente humano, o quadrinho carateriza seus personagens de maneira exemplar, sem a necessidade de estereótipos ou didatismo infantil. Todo bairro e toda rua já tiveram sua história à la Tungstênio. E você, caro leitor, já foi protagonista em alguma delas. Mas não pense que estou criticando-o. Não me odeie. Eu mesmo já fui protagonista de algumas também.

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