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Logicomix – A arte da razão!

A virada do século XIX para o XX foi um período especial para o intelecto humano. Especial como só havia acontecido em 3 outras oportunidades: o “Milagre Grego”, o Renascimento e o Iluminismo. Muito pouco, se considerarmos toda a extensão da história da humanidade. Ainda mais se considerarmos que, somadas as durações de todos esses períodos juntos, mal conseguimos ter meio milênio. Pouquíssimo para uma espécie que já caminha nesta rocha há dezenas de milênios. Mas foram esses breves períodos da humanidade que produziram mulheres e homens singulares, que nos tornaram de caçadores-coletores e precários agricultores em seres que hoje investigam a natureza do universo e da própria existência. Foram muitos percalços. Becos sem saída. Preconceitos, misticismo e variadas formas sistemáticas de ignorância, mas foram estes poucos humanos tão particulares, que viveram em períodos tão prolíficos, iluminados pela razão e pelo conhecimento, nos fizeram chegar até aqui.

Logicomix

Poucas vezes na história da humanidade se viu um período tão abundante de mentes geniais, muito menos em tantos campos diferentes do conhecimento. Bohr, Maxwell, Hilbert, Hegel, apenas para citar alguns. Sem falar daquele que virou de ponta cabeça tudo o que sabíamos sobre o universo, colocando a sua figura como um colosso do conhecimento humano, uma imagem indissociável daquilo que a nossa espécie tem a oferecer de melhor. Mas nosso assunto não é o criador da famosa equação E=MC2. Logicomix (Editora Martins Fontes) é a história de outro desses gigantes. E que história! Claro que a trajetória do nosso protagonista também se passa nesta época, considerada a “era de ouro” das ciências.

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Os roteiristas Apostolos Doxiadis e Christos Papadimitriou!

Ora, para que os autores gregos Apostolos Doxiadis, Christos Papadimitriou (roteiristas), Alecos Papadatos (desenhista) e a argelina Di Donna (colorista) se ocupassem da história de alguém notável não apenas por seu trabalho, mas também por sua vida, algo que valesse uma narrativa em quadrinhos, eles precisavam escolher bem. E escolheram. Bertrand Russell é certamente uma figura digna de uma narrativa. Herói da matemática, pioneiro e revolucionário da lógica contemporânea. Neste momento, o amigo leitor pode se perguntar: “Um herói da matemática? Porque eu não deveria dormir nesse exato instante?” Porque você deve adicionar a essa equação os títulos de amante libertário e militante pacifista em um período da história que englobou as duas maiores guerras que já vimos. Se isso não chama sua atenção, nada o fará.

Bertrand Russel em 1951!

Bertrand Russel em 1951!

Mas trata-se de uma biografia extensa, e para compreender a vida e as motivações de Russell, um matemático e filósofo de intelecto gigantesco, é preciso também compreender, ao menos em parte, seu trabalho. E aqui a coisa poderia ficar difícil. Explicar matemática básica já não é tarefa das mais fáceis. Conceitos avançados então, uma tarefa para poucos. Mas entender a filosofia de Russell na sua completude é um trabalho para meia dúzia de pessoas no planeta. E é aqui que os autores dão um verdadeiro show, uma aula de narrativa e histórias em quadrinhos. Os autores estão plenamente cientes da dificuldade que é compreender filosofia matemática. E nós sabemos que eles estão cientes disso porque eles próprios se colocam, literalmente, no cerne dessa dificuldade. Explicamos.

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A narrativa se desdobra em três níveis. Um idoso Russell comparece a uma universidade dos EUA em 1939 para ministrar uma palestra: “O papel da lógica nas relações humanas”, em que ele falaria sobre um tema que lhe era caro no decorrer de sua vida, a relação do pensamento lógico com o comportamento ético e moral da humanidade. Não se espante se você estiver lembrando de um certo Vulcano agora. Lá, ele é confrontado por militantes pacifistas (por idiossincrático que possa parecer), contrários a entrada dos EUA na Segunda Guerra. Eles exigem que o professor Russell seja coerente com a sua própria militância pacifista e permaneça do lado de fora, com as “pessoas razoáveis”. Russell os instiga a entrar, dizendo que na sua palestra os militantes encontrariam os argumentos dele  para sustentar sua posição. Qual não é a surpresa desses militantes ao descobrirem que a palestra não seria uma exposição estéril sobre matemática, mas sim o renomado professor expondo suas vísceras, narrando detalhada e indiscriminadamente a história de sua própria vida, nos seus momentos mais técnicos, relacionados as suas conquistas nos campos da matemática e da filosofia, até os momentos mais íntimos, como seus relacionamentos amorosos, familiares e pessoais.

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Então nós temos outro nível narrativo, onde conhecemos em detalhes a história de Russell. Desde sua melancólica infância, onde foi salvo da depressão e da opressão do fanatismo religioso de sua avó pela geometria e a filosofia lógica de Euclides, até sua fuga do pensamento provinciano inglês no aprendizado com os mestres germânicos da lógica e da matemática. É nesse nível que se passa o grosso da narrativa, pois mostra a busca de Russell pelo objetivo de sua vida: a organização de toda a ciência matemática sob o prisma de uma revigorada e, pretensiosamente, impenetrável filosofia lógica. E o resultado que temos é uma pequena obra prima, que usa como heróis e protagonistas algumas das figuras mais lendárias da ciência e da filosofia desse período, indo de um fictício encontro de Russell com Frege, passando por sua intensa mas instável amizade com Alfred Whitehead, até sua real relação com Ludwig Wittgenstein, um dos grandes filósofos do século XX. Paralelo a isso, vemos o professor narrando sua difícil relação com suas várias esposas e sua dificuldade na criação de seus filhos, além da sua franqueza em relação ao suposto fracasso do seu projeto, que o levou à beira da depressão e da insanidade em muitos momentos. Algo interessante aliás, porque não apenas isso é usado como elemento dramático da narrativa, mas conforme esta nos mostra, a insanidade era um triste fim comum a muitos estudiosos da lógica. É impossível não pensar na alegoria platônica da caverna. As luzes da razão cobram um alto preço.

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Para que possamos entender o porquê do processo estafante que é a pesquisa lógica, precisamos entender como ela funciona, quais são seus obstáculos e suas pretensões. Essencialmente, o que ela é. E, como dissemos pouco acima, as coisas podem ficar complicadas. No final da obra temos um pequeno glossário de termos que nos ajudam a entender algumas coisas de maneira mais geral. Mas é lá, na própria narrativa, em uma sacada metalinguística de um brilhantismo ímpar, que os autores erigem esse pequeno monumento dos quadrinhos: ao se colocarem como personagens da história, no papel de observadores e organizadores dos eventos da obra, eles também se colocam como uma ponte para os leitores imergirem nos conceitos mais complexos de Russell, expondo-os de forma didática através de debates entre eles próprios onde, curiosamente, muitas vezes eles divergem de opinião, como se eles mesmos estivessem tentando entender o pensamento, a vida e a obra do autor. Não obstante, um dos criadores e também personagem da obra, Papadimitriou, é um especialista em lógica de programação de computadores, ou seja, também não nos deixa fugir a atualidade do pensamento de Russell. Até porque, Alan Turing, pai da computação, foi profundamente influenciado pelo trabalho do professor. Assim, quando são necessárias analogias, ou explicações mais claras e objetivas, os criadores ressurgem nas páginas na sua forma de personagens, colocando as ideias e conceitos da história em ordem, para que possamos voltar a ela. Simples, eficiente e elegante. Como Russell acreditava que a matemática, a lógica e a filosofia deveriam ser.

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Mas, infelizmente para Russell e para todos nós, ele não conseguiu cumprir seus objetivos. Não porque não tivesse a inteligência e o conhecimento para tal, mas porque seus objetivos eram ambiciosos demais e a história não esteve ao seu lado. Enquanto ele clamava por uma espécie humana mais lógica, mais sábia, mais tolerante, nós nos lançávamos nos conflitos mais sangrentos que esse planeta já viu. Um atestado da humanidade sobre a sua capacidade para a brutalidade e sua disposição para a ignorância e a violência. Porém, Russell, no fim de sua vida, entendeu e aceitou algo extremamente importante: tal qual o próprio conhecimento, a humanidade é um trabalho em progresso e aberto a infinitas possibilidades, na qual não existe um caminho certo se não aquele que escolhemos trilhar. Como é citado no final da narrativa, em uma paráfrase análoga a ela, enquanto os autores dentro obra apropriadamente assistem à peça Oresteia, que fala sobre o triunfo da sabedoria e da democracia sobre a vingança, na apropriadamente escolhida cidade de Atenas, berço dos heróis de Russell e da filosofia e, porque não, da humanidade em geral, como Aristóteles e Euclides: “Que a voz assassina da discórdia nunca se eleve na cidade, e que a vingança seja incapaz de incitar aqui uma guerra sangrenta. (…) E que os cidadãos se regozijem sob o sol esplendoroso (…) Regozijai-vos, cidadãos felizes que apreciam a verdadeira sabedoria!”

Por isso devemos escolher bem. E como faremos isso? Com vocês, o professor Bertrand Russell.

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