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FASHION BEAST (Panini) – Conto de fadas em roupas de grife

Dentro da indústria do entretenimento, é impossível para o público mais fiel deixar de interessar-se por esta ou aquela obra que tenha um artista de sua admiração envolvido, o que já gera certa expectativa, às vezes atrapalhando uma apreciação mais imparcial. Neste quesito, é justo dizer que Fashion Beast, em termos de promoção, se beneficia bastante dos nomes em sua equipe. Alan Moore, escrito em destaque na capa, tem inegável apelo junto ao fã de quadrinhos. Malcolm McLaren, o mítico empresário da banda punk Sex Pistols, aparecendo logo depois de Moore, é mais um chamariz para o leitor antenado em cultura geral. O desenhista Facundo Persio não é conhecido por aqui, mas a dupla do roteiro já deixou claro que ele deve ser alguém competente para a tarefa, ou não estaria no time. Parece mesmo algo grande! Mas as letras miúdas revelam mais um nome… Antony Johnston? Bem, quando você descobre sobre isso, pode sentir-se um tanto enganado.

Fashion Beast é originalmente um roteiro para cinema que acabou engavetado. Foi iniciativa de Malcolm McLaren convidar Alan Moore para desenvolver o trabalho, na metade da década de 1980, passando a ele uma sinopse que propunha uma espécie de reimaginação de A Bela e a Fera dentro do universo da moda. O trabalho ficou no limbo até 2012, quando a Avatar Press teve a ideia de transformá-lo em uma minissérie publicada em dez números.  É aí que Antony Johnston entra, pois seu trabalho foi adaptar o roteiro de cinema para as HQ’s, e ainda que tivesse supervisão do próprio Moore, que prefaciou a edição encadernada, qualquer leitor familiarizado com o texto do escriba britânico percebe que existe um conflito de linguagens ali. Naturalmente, Johnston procurou ser o mais fiel possível ao roteiro original, o que acaba nos dando a impressão que folheamos um storyboard em vários momentos da trama, pois ela é muito mais visual do que se poderia supor em se tratando de algo envolvendo o nome de Moore, que já nos acostumamos a ver alargando os limites narrativos das histórias em quadrinhos, enquanto consideradas como união de texto e imagens. Não necessariamente isso deve ser tomado como defeito, mas não deixa de gerar certo estranhamento e é uma informação pertinente a qualquer um que se aventure a ler.

Ambientada em um mundo que combina passado e presente, em termos de cenários, roupas e demais objetos de cena, criando um clima atemporal muito conveniente à proposta, essa empreitada idealizada por McLaren e refinada por Moore, ao ganhar vida nas páginas se torna algo como uma casa de bonecas gótica, pendendo para o macabro em alguns momentos. Esse ar burlesco e fantasioso, que raramente ganha formas críveis fora da boa literatura, funciona bem na história e encaixa-se perfeitamente com o conceito de moda, intrinsecamente ligado à efemeridade de um momento. Em determinada cena, Celestine, o recluso e genial estilista, prega sobre o poder da imagem e a magia do glamour como verdades fundamentais daquele micro cosmo, onde a guerra nuclear iminente e falta de perspectiva acabam corroborando seu discurso. Emulando a Fera, sua maldição é muito pior do que a da história original, tornando o caminho e os desvios de sua Bela muito mais complexos, cujos problemas incluem o relacionamento com uma terceira personagem, o que transforma essa improvável dupla protagonista em um triângulo, não facilmente definível como amoroso.

Carregado desde o início com uma forte ambiguidade sexual, o roteiro de Fashion Beast poderia ter rendido um grande filme. Em sua versão em quadrinhos, os desenhos de Facundo Persio são muito bons, mas a natureza da história talvez pedisse mesmo um filme, com atores encarnando essas indefinições propostas. Persio realmente dá vida e movimento ao roteiro, com seus traços fortes e bem definidos, mas assumiu uma tarefa inglória no fim das contas, que não seria possível detalhar sem entregar detalhes demais da história bizarra. Não há como saber como foi esta parceria de Antony Johnston com o desenhista. Sabemos que Alan Moore detalha absolutamente tudo, não deixando muito para o desenhista pensar, então, imaginando que Johnston seguiu esse caminho, ele conseguiu elaborar uma boa narrativa para embalar a travessia dos habitantes deste estranho mundo. As páginas realmente fluem e nos convidam a encontrar o desfecho deste conflito.

Entre os méritos e as ressalvas, é sempre muito bom poder ler quadrinhos cujo objetivo parece realmente contar uma história de forma competente, trazendo um conteúdo forte e reflexivo, com os envolvidos sabendo o que querem, ainda que errem aqui e ali.  Em um raciocínio que esbarra em Pirandello, podemos enxergar algo do próprio Alan Moore em Celestine e entre essas e outras leituras, Fashion Beast tem algo a dizer de forma mais clara e direta, usando como discurso as palavras do estilista fictício citadas anteriormente, mas como em qualquer história melhor elaborada, assim como na vida real, não existem verdades ou interpretações absolutas.  Além disso, o que vier é lucro.

P.S.: Recomendo fortemente que só se leia o prefácio da edição encadernada APÓS o término da história. Acredito que isso contribuirá muito com o prazer da leitura e elaborei este texto com o cuidado de apresentar conceitos, entregando o mínimo possível da história, mas nem todo mundo tem esse cuidado.

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