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Câmera Indiscreta – A lente da verdade!

“Em minha primeira história erótica, tentei expor todos os detalhes. Eu me propus um desenho idealizado por insistir nos aspectos cerebrais e intelectuais da história. Para distinguir meu trabalho da pornografia, tentei tratar mesmo as piores coisas com humor e sem evocar sentimentos de culpa.” – Milo Manara

Câmera Indiscreta_Manara

O fato é que, se tomarmos pelo simples aspecto estético, Milo Manara poderia até mesmo ser considerado repetitivo. Vejam suas mulheres! O erotismo provém de um mesmo modelo padrão: esguia, caucasiana, cabelos longos e olhos insinuantes. Mesmo com o apelo da fantasia feminina, nestes tempos de banalização da nudez e do sexo a obra de Manara poderia facilmente ser considerada redundante. Como então o autor italiano continua a nos surpreender depois de toda uma carreira que gira em torno das mesmas motivações artísticas?

É porque essas “motivações” – leia-se: suas mulheres – são apenas fumaça e espelho. Manara usa, de maneira sem paralelos nos quadrinhos – e talvez na maior parte das formas de arte – o erotismo como pano de fundo para seu verdadeiro foco artístico, estes sim, muito prolíficos: o realismo fantástico e uma aguda crítica social. Não à toa, seu mais recente volume publicado, em 2015, é dedicado a figura de Caravaggio, um artista renascentista que, podemos considerar, por seu estilo, análogo ao quadrinista italiano, visto que era conhecido por suas pinturas extremamente realistas de cenas e personagens mitológicos, assim como uma composição ímpar do corpo feminino; não obstante, era um revolucionário inconformado com os problemas sociais e políticos de seu tempo. Compreensível a identificação do mestre da nona arte com o mestre da terceira.

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Pois bem, amigo leitor. É desnecessário atestar a qualidade deste autor. Todo bom aficionado por HQ’s conhece bem o trabalho de Manara. Mas se você está chegando agora ao mundo dos quadrinhos, ou simplesmente não está tão habituado à arte do italiano, a Editora Veneta acaba de publicar no Brasil o volume Câmera Indiscreta (em lançamento duplo com Quimeras), que reúne, em 112 páginas, contos e alguns trabalhos consagrados do autor, estrelando como carro-chefe o conjunto de histórias homônimo que dá nome ao álbum.

O volume tem todas as marcas a que já nos referimos de Manara. Em todos os contos, o autor transita do realismo, ao realismo fantástico até chegar na ficção científica e então voltar. Usa como condutores personagens consagrados da literatura e da vida real, pontuando suas histórias ora com singeleza poética, ora com profundas, e até mesmo agressivas, críticas sociais. Manara, que foi militante em Maio de 68, não se omite em relação as suas crenças filosóficas e posicionamento social. Crenças essas que tornam Manara uma espécie filósofo cínico contemporâneo. Ao mesmo tempo em que celebra ícones pop como John Lennon, em uma história curta mas de tremenda intensidade, também denuncia aspectos doentios e sadistas desse mesmo universo pop contemporâneo, como a alienação provocada pela propaganda e a percepção distorcida da vida em sociedade pela incapacidade das pessoas de lidarem com a sexualidade, sem as antigas e anacrônicas amarras morais que ainda insistem em defini-la.

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Sua ferramenta para tal tarefa não poderia ser outra, senão aquilo que este escriba gosta de chamar de “mulheres-conceito”; não são apenas belas figuras femininas, mas a representação de conceitos – ou sua refutação – que elas encarnam. Não chamamos Manara de “cínico” à toa, já que a filosofia cínica original de Antístenes pregava a busca da felicidade através de um completo desprezo por comodidades, riquezas, apegos, convenções sociais e pudores. Pois são estes mesmos elementos que Manara considera os maiores vilões da era contemporânea. Não que ele seja uma espécie de militante ideológico e irracional do assunto; o autor entende que os verdadeiros desvios morais contemporâneos residem no excesso da prática desses, visto que eles rapidamente se tornam violência; violência física, mas também artística, como demonstrada no primeiro ato do volume, Publicidade, e até mesmo uma violência moral, como no último ato que dá nome ao álbum, Câmera Indiscreta.

John Lennon_Manara

Esses pudores e convenções sociais são oriundos em grande parte do hábito e da alienação, mas também da religião. A presença de figuras demoníacas, sempre associados ao dionisíaco, tão execrado pela tradição judaico-cristã ocidental, é frequente em vários momentos da obra, demonstrando que nós temos mais receio de nossa percepção do sexo do que do sexo propriamente dito. A crença, essa ferramenta que geralmente mal-usada acaba tornando-se um grilhão, é o maior alvo do italiano nesta obra. Talvez por isso a passagem de John Lennon seja talvez o momento mais transcendente idealizado por Manara: A celebração da vida de um homem que não possuía crenças, mas ao mesmo tempo abraçava a todas. Na verdade, o álbum é uma grande celebração de muitos ídolos de Manara, quase todos considerados revolucionários ou mesmo subversivos em seu tempo. Fellini, Moebius, Picasso… A lista é longa. Manara leva a sério a máxima cartesiana “se quer ser grande, apoie-se sobre os ombros de gigantes.”

John Lennon_2_Manara

A apreciação do volume torna-se ainda melhor pelo trabalho dedicado da Veneta na composição dele. Capa dura, papel de altíssima qualidade e o formato europeu permitem uma visualização perfeita do trabalho em nanquim do autor, conhecido pela profusão de elementos visuais nos quadros. A arte de Manara é muito peculiar e depende dos detalhes para sustentar a narrativa, tornando a edição da Veneta digna da qualidade de seu conteúdo.

Manara é essencial não apenas para os apreciadores de quadrinhos, mas de toda forma de arte. Enquanto desnuda suas mulheres, Manara desnuda a nós mesmos, deixando-nos moralmente, socialmente e filosoficamente nus diante de sua obra. Seu perfil ao mesmo tempo ilusionista e questionador nos serve como um espelho, ou como a lente de uma câmera… Dependendo do que você vê, você pode ter uma ideia de quem você é.

Olhe através dessa lente. O que você vê?

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