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Bulldogma – Abdução nossa de cada dia!

Bulldogma

Uma ilustradora de embalagens e livros infantis, elaborando um projeto pessoal – seu primeiro trabalho de HQ – entre as correrias comuns da vida. Uma situação bastante corriqueira, não fosse o fato de que ela acaba de se mudar para um imóvel construído sobre um terreno rico em silício, o que atrai alienígenas e faz do local um foco de abduções. Ficção científica? Embora o gênero esteja dentro do vasto repertório referencial de Bulldogma, é apenas um detalhe entre tantos, parte de uma loucura sequencial que busca – e encontra – seu caminho na imaginação de um leitor inserido no ambiente multicultural destes tempos de internet.

Deisy Mantovani é a protagonista, acompanhada de um buldogue francês chamado Lino. O cãozinho é uma espécie de voyeur de um cenário geral onde o cotidiano de sua dona – dividido entre trabalhos que não gosta, festas, conversas em bares e vídeos do Youtube, em meio outras coisas mais ou menos estranhas – é montado pelo autor em um momento, para ser derrubado sem piedade em outro. Falando no responsável pela obra, Wagner Willian, roteirista e desenhista, trouxe Deisy de seu livro ilustrado de micro contos, Lobisomem Sem Barba, ambientando suas ficções no mesmo universo. Qualquer um pode pensar em Tarantino neste momento, mas Wagner deixa clara sua queda pela Nouvelle Vague nesta HQ, com referências diretas a Truffaut, cujo personagem Antoine Doinel (Os Incompreendidos) apareceu em mais cinco filmes.

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Como influência do movimento cinematográfico francês, já era esperada a desconstrução e o experimentalismo da narrativa. Neste ponto, uma óbvia vantagem que a mídia de quadrinhos tem é que seu público não está preso um tempo pré-determinado, o que nos convida a demorar mais em algumas páginas ou quadrinhos específicos, ou voltar um pouco naquela sequência que parece mais surreal, sem prejuízo à fluidez da leitura. Bebendo também do cinema de David Lynch e John Cassavetes, estas relações podem dar uma impressão de um hermetismo chato e metido a besta, mas a esperteza deste roteiro é que isso aparece em meio a citações de filmes B dos anos 50, ou a um episódio constrangedor da série clássica de Star Trek, entre conversas banais do dia-a-dia e muitas outras coisas que você e eu conhecemos bem.

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A metalinguagem explícita – ou não – deixa clara uma parte da proposta de Wagner, confirmando o clichê de que o autor vive em sua obra. Mas afinal, quem é seu alter ego em Bulldogma? Deisy, a mais óbvia candidata, ou Lino? Mesmo a certeza absoluta, em virtude de algum evento inesperado, pode ser colocada em xeque mais à frente. Essa incerteza e o inusitado são ressaltados por uma arte solta em preto e branco, com ocasionais tons de cinza, sem pretensões ao realismo ou detalhismo exacerbado, mas com cenários recheados de referências de todo tipo. Ainda de acordo com essa proposta, os desenhos entregam o bastante para manter a narrativa funcional, mas deixam uma margem de interpretação para um envolvimento maior do leitor.

Com mais de 300 páginas e essa pegada, digamos, pouco comercial, o risco de comprometer a experiência era enorme, mas a condução da trama é segura, cadenciando os acontecimentos em um ritmo bem agradável, onde as quebras estão a favor da história. Talvez o único porém seja a elaboração de algumas falas que, se não chegam a atrapalhar o andamento, trazem algum estranhamento quando ditas por determinado personagem. Não é um problema grave, mas como tudo mais parece tão cotidiano, um cuidado maior na caracterização seria não apenas bem vindo, mas necessário.

Bulldogma

A edição da Veneta é caprichada, com capa cartonada e orelhas, valorizando a aquisição. Para quem quiser mergulhar ainda mais na obra e na mente inquieta de Wagner Willian, a saga desta jovem mulher e sua batalha diária ainda se desdobra em um site com muito material extra, easter eggs e outras coisas de bastidores, além de uma seção chamada Flerte da Mulher Barbada, onde a própria Deisy Mantovani entrevista gente ligada aos quadrinhos.

Bulldogma não é fácil, mas isso é exatamente o seu charme. Seu término traz a vontade de reler – para procurar mais detalhes perdidos nas páginas e refletir sobre a HQ como um todo – e de recomendar para os amigos e assim ter mais gente para conversar sobre ela. Além disso, levando em conta o que o autor parece pretender com sua obra, extrapolada além das páginas impressas, fica a curiosidade sobre o que virá a seguir. A única certeza é que o adjetivo “comum” vai passar longe.

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