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Uma Mente Brilhante – Entrevista com Alan Moore (PARTE 1)

Alan Moore é aquele tipo de personalidade pop que dispensa qualquer apresentação, ainda mais em tempos em que os termos nerd e geek são moda em qualquer texto metido a descolado. Isso chega a ser irônico, visto que esse senhor inglês de Northampton é completamente avesso ao tipo de badalação comum a esse universo, onde sua fama foi construída.  Mesmo com um legado que influencia o mercado até hoje, Moore há muito tempo quer distância das grandes editoras e não se nega, vez por outra, a vociferar contra elas e sua política em relação aos criadores, um assunto onde não faltam farpas até para Hollywood.

Alan Moore

Radical ou não, o roteirista segue firme em sua posição, dedicando-se inclusive a outros tipos de narrativa. Atualmente escreve JERUSALEM, um romance cuja expectativa é ultrapassar quinhentas mil palavras, prepara uma HQ sobre H.P. Lovecraft para a Avatar Comics e mais uma história da série A Liga Extraordinária. Na entrevista, ele comenta, entre outras coisas, a relação entre arte e magia no ato de criar e na percepção da realidade.

Originalmente publicada no site www.believermag.com e orgulhosamente traduzida pela equipe do FORMIGA ELÉTRICA!

I – O CONCEITO DE UM DEUS É UM DEUS

Como vai a produção de Jerusalem?

ALAN MOORE   Terminei o capítulo 32, uma narrativa de crime noir baseada no pastor James Hervey de Northampton, que acredito ter sido o pai de todo o movimento Gótico. Estou para começar o 33, que é uma combinação de história de fantasmas com narrativa lisérgica. Quando terminar esse, haverá mais dois capítulos e então desenharei a capa e farei as revisões. Meu melhor palpite sobre o término do livro seria talvez o fim de 2013 ou o começo do próximo ano.

Há rumores de que esse vai ser um livro longo. Quantas palavras você escreveu até aqui?

Alan Moore        Mais de meio milhão. Não tenho certeza, mas deve ficar em torno de seiscentas mil palavras quando terminado.

Assumindo que você é capaz disso, como você conseguiu colocar esse tipo de energia numa história em quadrinhos?

Alan Moore        Bem, funciona ao contrário na verdade. Eu tive sorte como escritor por começar trabalhando nos quadrinhos britânicos, onde francamente não há muito espaço. Costuma-se trabalhar numa antologia, se você estiver começando, onde tínhamos apenas três ou quatro páginas. Meus primeiros trabalhos na Doctor Who Weekly foram inserções de duas páginas, mas eu vinha do meio semi-underground das tiras dos periódicos britânicos sobre música, que me davam meia página, então pelo menos eu aprendi como contar um pedaço razoável de história em um espaço muito limitado. Quando eu consegui uma história em inserções de duas páginas, parecia bastante extenso.

O mundo se abriu!

Alan Moore        Abriu, e quando eu estava fazendo histórias de quatro ou cinco páginas para a 2000 AD eu estava descobrindo quanto material eu poderia acomodar naquele espaço expandido, e então, claro, quando eu fazia séries de oito páginas, expandiu-se novamente e quando eu finalmente mudei para os quadrinhos americanos e tinha vinte e quatro páginas coloridas para brincar, eu realmente gostei daquilo e dei o meu melhor para usa-las da forma mais eficiente. Começar num ambiente de histórias curtas; esse é o melhor treino para ser um escritor criativo.

E você soube imediatamente que Jerusalem seria um livro ou flertou com a ideia de fazer em quadrinhos?

Alan Moore        Não, eu nunca flertei com a ideia de faze-lo em quadrinhos. Na verdade, a decisão de escrever Jerusalem veio de uma reação muito, muito forte contra os quadrinhos. Quando comecei Jerusalem – deve ter sido por volta de 2006 – eu tive um rompimento muito violento com a DC Comics por conta do filme V de Vingança, que eu acho que estava estreando na época. Foi realmente muito bom dizer finalmente “Eu não vou mais trabalhar para vocês.  Não quero ter nada a ver com a indústria de quadrinhos  enquanto eu puder evitar”. A decisão de assumir Jerusalem foi um afastamento dos quadrinhos para explorar as possibilidades que um romance oferece. Eu realmente me diverti escrevendo meu primeiro livro, A Voz do Fogo. Ainda é um dos meus trabalhos favoritos, mas foi o primeiro, e aprendendo um pouco mais sobre o que é escrever livros enquanto o fazia, eu estava tentando descobrir se havia mais algumas outras ideias que eu poderia aplicar. Então, sim, nunca considerei outra coisa que não fosse um livro pesado.

Você o imaginou como um livro só ou algo que poderia resultar em múltiplos volumes?

Alan Moore        Teria mesmo que ser produzido em apenas um volume. Eu suponho que poderia ser dividido em três, mas a narrativa não é toda linear. Você com certeza não apreciaria a leitura de algum determinado capítulo de alguma determinada seção deste livro sem ler as outras seções. Não é como O Senhor dos Anéis neste sentido.

No entanto, a tendência parece ser produzir esses longos romances épicos de fantasia, cuja intenção é dividi-los para que os editores possam lança-los a cada dois ou três anos, que é o oposto do que você está falando; o tamanho não determina como ele deve ser publicado.

Alan Moore        É isso. O que eu estava tentando aqui é uma longa viagem fora da narrativa convencional.  Acho que é bastante legível, mas a estrutura, a história e o assunto, todas essas coisas são bem difíceis de definir. Partes do livro são de um realismo social francamente brutal situado em uma vizinhança carente, e há também capítulos de fantasia ultrajante que lidam com fantasmas, fadas, anjos e todo tipo de outras criaturas fantasmagóricas. E, no entanto, isso está no contexto majoritário de um romance realista social que olha para esta vizinhança pobre e para as pessoas que passam por ela através dos anos. Com certeza é um animal estranho.  Eu estive pensando em chamar de “ficção científica”, mas isso é muita perversidade, principalmente porque irritaria pessoas com uma definição muito rígida do que a ficção científica deve ser.

Praticamente todos os livros baseiam-se no pressuposto, que parece estar implícito no trabalho dos físicos modernos desde Einstein, que habitamos um universo que tem pelo menos quatro dimensões espaciais. Existem as três dimensões dos quais estamos conscientes, e há a quarta dimensão, que também é uma dimensão espacial, mas não a percebemos como tal. Percebemos as distâncias da quarta dimensão como a passagem do tempo. Se eu compreendo isso corretamente, acredito que todo o continuum é sólido com, no mínimo, quatro dimensões cujo tempo não está passando, onde cada momento que já existiu ou existirá está suspenso, imutável para sempre a partir desse sólido imenso de espaço-tempo. Portanto, a passagem do tempo é uma ilusão que só é evidente para nós enquanto nos movemos através deste enorme sólido ao longo do que percebemos como o eixo do tempo.

Onde você acha que a consciência humana se encaixa aí? Está de alguma forma separada disso?

Alan Moore        Se o tempo é uma ilusão, então todo movimento e mudança também são. Logo a única coisa que nos dá a ilusão de movimento, mudanças, eventos e tempo é o fato de que nossa consciência está movendo-se através dessa massa pelo eixo do tempo. Se você imaginar isso como um pedaço de película, cada um dos quadros individuais é estático. Se cada um representa um momento, eles são imutáveis. Não estão indo a lugar algum, mas enquanto a luz do projetor da nossa consciência os atravessa, isso nos garante a ilusão de movimento, narrativa, causa e efeito e circunstâncias.

Você também acredita que podemos mudar a abertura desse projetor através de vários processos, como magia ou outras maneiras de moldar a consciência.

Alan Moore        Sim, nossa visão da realidade, aquela que convencionalmente adotamos, é uma entre muitas. É praticamente um fato que nosso universo inteiro é um construto mental. Na verdade nós não lidamos com a realidade diretamente. Simplesmente compomos uma figura de realidade a partir do que acontece em nossas retinas, tímpanos e terminações nervosas. Percebemos nossa própria percepção, e essa percepção é a totalidade do universo para nós. Eu acredito que em um nível, magia é a tentativa fervorosa de alterar essas percepções. Usando a metáfora da abertura, você poderia alargar essa janela ou mudar o ângulo conscientemente e ver o que essa nova visão proporciona a você.

A expressão mais autêntica da magia se dá através da imaginação criativa?

Alan Moore        Na verdade, arte e magia são praticamente sinônimos. Eu imagino que isso remete ao fenômeno da representação, quando em nosso passado primordial, algum gênio ou outro flertou de verdade com a fórmula vencedora de “Isso significa aquilo”. Se “isso” era uma voz ou “aquilo” era uma marca numa parede ou um som gutural, foi um momento de representação. Foi o que realmente nos transformou do que éramos para o que poderíamos ser. Isso nos deu subitamente a possibilidade de linguagem. E quando você tem a linguagem, você pode descrever de forma pictorica ou verbalmente o mundo estranho e incompreensível que vê ao seu redor, e provavelmente um pouco antes disso você também percebe que, Hey, pode inventar coisas. A arte central do encantamento é tecer uma teia de palavras ao redor de alguém. E notamos muito cedo que essas palavras que escutamos alteram nossa consciência, e se utilizadas de uma maneira transformadora, nos levam a lugares dos quais nunca sonhamos ou que não existem.

Quando esse encantamento é a criação de deuses e a criação de mitologia, ou algo assim na prática da magia, o que eu acredito que está sendo feito é essencialmente a criação de metaficções. Criar ficções tão complexas e auto-referenciais que para todos os efeitos, quase parecem estar vivas. Isso seria uma das minhas definições do que um deus poderia ser. É um conceito que se tornou tão complexo, sofisticado e tão auto-referencial que parece estar consciente de si mesmo. Não podemos dizer que está definitivamente consciente de si mesmo, mas de qualquer maneira não podemos afirmar isso nem sobre nossos companheiros seres humanos.

Mas podemos contar histórias sobre um deus auto-consciente.

Alan Moore        Sim, e em algum nível, ontologicamente, a criação de um ser metafísico realmente é esse ser metafísico. Se deuses e entidades são criaturas conceituais, e acredito que sejam, evidentemente o conceito de um deus é um deus. Uma imagem de um deus é o deus – um pouco mais próximo.

SEGUNDA PARTE

FINAL

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