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Mitos africanos e afro-brasileiros – o quanto cabem na cultura pop?

Por que os mitos africanos e afro-brasileiros são praticamente ignorados entre os nerds?

Toda civilização, em todos os tempos, possui seus mitos. Com suas próprias qualidades, por meio da literatura oral e/ou escrita, esses mitos chegam até nós – mais ou menos da forma como sempre existiram (sobre isso, confira o artigo sobre American Gods). E hoje, mais do que nunca, também são convidados a habitar outras mídias, às vezes bem inusitadas.

Thor nas páginas da Marvel. Hércules em animação Disney, em parceria com Xena ou tomando uma sova de Kratos. As cruzadas e a busca pelo Santo Graal em dezenas de filmes (obrigado, Monty Python, que, aliás, foi tema de um Formiga na Tela). Pazuzu desafiando o padre Merrin.

Não faltam exemplos de como a cultura pop se alimenta do sagrado. Vários universos mitológicos nos trazem figuras poderosas e arquetípicas. Ao longo da história, povos têm se aventurado, questionado e conflitado em nome da fé. O mundo imaterial mexe com muitos de nós – da crença em fantasminhas camaradas àquele medo de janelas batendo sozinhas.

Acreditando ou não em cada uma dessas esferas, podemos concordar que elas rendem narrativas que dizem muito sobre quem somos, certo? Mas fica a pergunta: em meio a tantas fontes, por que crenças africanas e afro-brasileiras costumam ficar de fora do entretenimento nerd?

Afinal, se você conhece os orixás e seus mitos, sabe que podem ser épicos e passionais em medidas que literatura e cinema adoram. E a interação com o além, segundo essas crenças, tem conceitos interessantes o bastante pra mover um montão de tramas (pense em variações de Hellblazer/Constantine, só para começar).

mitos africanos

Uma representação do orixá Ogum que poderia muito bem constar em um guia de divindades de Dungeons & Dragons.

Vejamos, então, o quanto esses encontros acontecem e como. Importante: estamos falando de reconhecimento, e não de conversão. Os próprios adeptos dessas crenças sabem separar ficção e objeto de culto. E reconhecimento nunca é demais, creia você em Cristo, Oxalá, Sagan, Nietzsche, Cthulhu…

Entre o óbvio e o desconhecido

A primeira razão para que as crenças afro fiquem de lado parece até bem simples: elas não têm grande relevância em termos globais. Porém, por trás dessa suposta obviedade moram coisas que muitos desconhecem.

A África abriga centenas de etnias. Um pedação do mundo árabe é africano. A mitologia egípcia também entra no balaio do continente. E é nessas que reconhecemos alguns temas que o mundo do entretenimento gringo não se recusa a abordar.

Como isso tem sido feito já é outra história. Vejam que aí no meio caberia todo um debate sobre estereótipos, ocidentalização, whitewashing e afins. Mas, por questão de foco, vamos guardar esse importante tema na gaveta.

mitos africanos

Em pleno 2016, Deuses do Egito sequer levou em conta o fenótipo do norte da África.

Dito isso, eis um primeiro erro, bem comum: acreditar que valorizar a mitologia dos orixás dá conta da diversidade africana. Pois, originalmente, os orixás são divindades da etnia iorubá (a grosso modo, correspondente a um pedaço da Nigéria – hoje um país de maiorias cristã e muçulmana). E, já em solo brasileiro, seu culto passou por transformações mil.

Além disso, as crenças iorubás são apenas algumas das que cruzaram o Atlântico, com seus praticantes escravizados. Indivíduos das etnias bantu (atuais Angola e Congo) e jeje (atuais Togo, Gana e Benim) também vieram acorrentados para o Brasil. E o mesmo valeu para Cuba, Haiti e Estados Unidos.

Mas se os Estados Unidos estão nesse rol, por que Hollywood não resgata o passado de diáspora negra também pelo viés dessas religiões? Bem, até que já resgatou. Vide a animação Disney A princesa e o sapo ou o terror A chave mestra. Ambos são ambientados na cidade de Nova Orleans, onde os cultos jeje foram expressivos o bastante para, pelo menos, popularizar ideias genéricas de magia negra, vodus e perigos afins.

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Papa Justify e Mama Cecile, os tenebrosos witch doctors de A chave mestra.

É o que nos leva a outro obstáculo: a dupla preconceito e cagaço.

Lembram do filme Advogado do diabo? Em dado momento, o personagem de Keanu Reeves defende um homem que havia sacrificado um bode em um ritual genericamente africano. O advogado vence com o argumento da liberdade de culto. O problema é quando o personagem de Al Pacino simpatiza com a defesa (spoiler: Al Pacino é o capeta).

Religiões de origem africana foram e ainda são malvistas por aí. Seja por falta de conhecimento, por legítima opção pessoal ou até por puro racismo, são crenças marginalizadas; “coisas do demo”. E é nesse espelhamento da sociedade que algumas narrativas trazem sacerdotes africanos como algo a se temer.

Por que o mesmo não ocorre com o sagrado greco-romano, nórdico ou celta? Quer dizer, não seriam outras formas de paganismo, admitindo divindades com traços humanos, sacrifícios e outras coisas que a sociedade tende a rechaçar? Nada disso as impede de povoar nosso imaginário, inclusive desembocando em fenômenos do naipe de O Senhor dos Anéis.

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Acredite: se apresentada a um umbandista, esta ilustração de um Nazgûl bem que poderia ser interpretada como representação de um Exu.

Podemos responder com duas observações, bem resumidamente. Primeiro: enquanto objeto de culto, não há tanta expressão contemporânea desses panteões. Atualmente, há, sim, pessoas que cultuam Zeus, Apolo e companhia – não como um passatempo, mas como expressão de fé verdadeira. Contudo, não são numerosas a ponto de incomodar religiões majoritárias e ser acusadas de estragar vidas alheias (como são acusados Exus e Pombagiras).

Segundo: existe um prestígio em torno das mitologias europeias, como grandes histórias fundadoras de sociedades, com o selo de aprovação do mundo erudito. Tem Homero e a Odisseia, Wagner e a “Cavalgada das Valquírias”…

Isso explica por que, mesmo em terras tupiniquins, conhecemos mais sobre mitologias europeias do que africanas (ou mesmo indígenas). A Europa ganha ares de elite, modelo, berço intelectual. Sob essa ótica, Thor, com seu martelo, é “um clássico atemporal”; já Xangô, com seu machado, é “coisa de macumbeiro atrasado”. Duas divindades do trovão, dois pesos e duas medidas.

Ninguém dá a mínima mesmo?

Apesar desse cenário, não é que faltem ideias diferentes, que não reduzam essa porção afro a sustos e feitiçaria. Mas será que geram produtos rentáveis e famosos o bastante?

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Nos anos 2000, Joe Quesada criou os Santerians, grupo de heróis que habita o contexto nova-iorquino do Demolidor. O nome vem de Santería (espécie de Candomblé caribenho), e os personagens aludem aos orixás Xangô, Ogum, Oxum, Oyá (ou Iansã) e Eleguá (análogo a Exu). Além disso, a Marvel já havia apresentado, nos anos 1980, uma equipe de heróis inspirados no panteão iorubá.

 

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Oya: Rise of the Suporishas, de 2014, foi dirigido pelo nigeriano Nosa Igbinedion e conta com uma heroína filha de Oyá. Há ainda um segundo filme da série, de 2016, com Iemanjá em foco.

A questão é que ninguém espera que os Santerians surjam na série dos Defensores ou que Hollywood adapte os curtas de Igbinedion. Talvez devamos nos concentrar no contexto nacional, já que falamos também de crenças afro-brasileiras. E, como nossa arte já rendeu grandes homenagens à matriz africana, este exercício aqui é restrito a nerdices e entretenimento do gênero. Quem tem trazido os orixás para nossas bandas?

Começar pelo quadrinista Hugo Canuto é uma boa pedida. Sua homenagem dupla – aos próprios orixás e a Jack Kirby – começou até que simples, com ilustrações soltas simulando capas de HQs. Agora o projeto “Contos de Òrun Àiyé” pretende trazer narrativas completas. Seu crowdfunding rendeu mais que o triplo da meta, e logo devemos ter belas adaptações da mitologia iorubá em HQ, além de uma compilação de orixás nos traços de diversos ilustradores.

Artigo Mitos africanos na cultura pop

Ilustração da primeira safra do projeto “Contos de Òrun Àiyé”.

Os mitos iorubás também alimentaram a literatura fantástica de P. J. Pereira. Vindo do meio publicitário, o autor se pôs a escrever sobre um universo místico que a princípio lhe dava muito medo. Nasceu a trilogia Deuses de dois mundos, que entrecruza um par de narrativas: a do jornalista Newton Fernandes, no Brasil de hoje, e a de um grupo de aventureiros iorubás, no tempo mítico.

A saga desses guerreiros nada mais é do que uma releitura de eventos mitológicos, muito bem enredada pelo autor. Mais do que isso, emprega diversas noções da cultura iorubá: o que é destino, como os orixás se conectam aos mortais, como se concebe o próprio tempo. Este último conceito, aliás, é engenhosamente explorado no terceiro livro – onde fica nítida a evolução autoral de Pereira.

(Trailer inaugural da saga Deuses de dois mundos, lançado em 2013.)

Reza a lenda que já compraram direitos de adaptação da obra. Vejamos se vem filme por aí. Enquanto isso, podemos relembrar Besouro: dirigido por João Daniel Tikhomiroff e lançado em 2009, o longa conta a história do lendário capoeirista Besouro de Mangangá. A coreografia marcial ficou por conta de Huan-Chiu Ku, responsável por nada menos que O tigre e o dragão e ambos Kill Bill.

O filme não fez tanto sucesso para além do chamado povo-de-santo (adeptos de religiões afro-brasileiras como Candomblé, Umbanda e tantas outras). Ainda assim, vale uma espiada. (Não é que a simples participação dos orixás já pague o ingresso. Afinal, até Cinderela baiana – clássico trash protagonizado por Carla Perez – tem uma cena inteirinha recheada de orixás. E não foi por isso que essa “obra-prima” viralizou na rede anos atrás, certo?)

(O trailer de Besouro já entrega a participação de Exu no filme, além de alguns easter eggs para entusiastas da cultura afro-brasileira: tem patuá, fechamento de corpo e Oxum em plena água doce.)

Também vale lembrar que outras iniciativas pipocam por aí. Por exemplo, o RPG Odú, de autoria de Felippe Bardo e desenvolvido pelo Lampião Game Studio. O sistema emprega interessantes elementos da espiritualidade iorubá e adota búzios em vez de dados. Ainda precisa de alguns ajustes editoriais (em termos de tipologia e, principalmente, iconografia) e conceituais (como esclarecer melhor os perfis de orixás, inclusive para leigos). Em todo caso, é prova de que os amantes dessa cultura não dormem no ponto: se é difícil que grandes empresas produzam esse tipo de conteúdo, eles próprios correm atrás de fazê-lo e divulgá-lo. Aliás, o manual está disponível para download gratuito.

Aos interessados, um começo neutro e possível

Para que essas referências todas façam sentido, ajuda conhecer alguma coisa dos mitos iorubás e seu entorno cultural. Não, não é preciso se iniciar no Candomblé nem frequentar gira de Umbanda. É verdade que a maioria das obras que poderiam introduzir o tema são de viés religioso, mas há também as de cunho sociológico. Assim, é perfeitamente possível conhecer melhor o afro-brasileiro sem o componente da fé pessoal (como fazemos com tantas outras esferas do sagrado, contemporâneas ou não).

Destaque para duas obras do pesquisador Reginaldo Prandi: Mitologia dos orixás (2000) e Segredos guardados (2005), ambas pela Companhia das Letras. A primeira compila uma tonelada de mitos iorubás, categorizados por divindades, com um estilo que busca emular sua forma original de transmissão – pela oralidade. Já a segunda retoma de forma clara o histórico das religiões dos orixás, entre África e Brasil, variações e adaptações.

E há, claro, nossa querida internet. Se resolver caçar informações por aí, apenas considere que várias forças (tradição oral, miscigenação, sincretismo, opressão, resistência…) ocasionaram diversas vertentes e visões sobre o panteão afro-brasileiro. De tantas possibilidades, assim como cada terreiro é quase uma religião em si, cada site é uma opinião entre muitas.

A propósito: se isso não for outro indício de uma riqueza cultural com muito por explorar, o que mais seria?

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