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As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay

As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay

As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay

O mundo da ficção geral aborda várias profissões, no entanto, apesar das histórias em quadrinhos andarem na moda graças ao cinema, não é tão fácil encontrar narrativas com personagens centrais que ganham a vida com isso. Provavelmente, isso se explica pelo fato de que a esmagadora maioria do público, hoje responsável por encher os cofres das corporações, consumindo produtos derivados de personagens das HQ’s, não sabe sequer o nome do(s) criador(es) daquele personagem que é o seu preferido desde criancinha. Não é absurdo intuir que o raciocínio do mercado é que fora do círculo de fãs engajados, que já compram biografias dos seus artistas e roteiristas preferidos, a ocupação não tem muito apelo. Relativo, pois depende do autor e do tipo de história que se pretende contar.

Nesta altura, se você nunca ouviu falar de As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay (The Amazing Adventures of Kavalier and Clay), já percebeu sobre o que é. Mais precisamente, trata-se de um romance histórico que se inicia nos primórdios da indústria dos comics, ou seja, em fins da década de 1930. Caso você não seja um leitor assíduo de HQ’s e nem tenha muito interesse por super-heróis, esse não é um motivo para ignorar o livro, pois está longe de ser “apenas” sobre isso. Tampouco deve ser procurado pelos fãs de Marvel, DC, etc. unicamente por seu tema, afinal, o filme Artistas e Modelos (1955), com Jerry Lewis e Dean Martin, também passeava por esse mundo, mas insinuando um retrato bem pouco lisonjeiro – ridículo, na verdade – dos leitores.

As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay

Michael Chabon

Escrito por Michael Chabon, foi publicado originalmente em 2000, pela Ramdom House, o que lhe rendeu o prêmio Pulitzer no ano seguinte. A editora Record lançou-o no Brasil em 2002, edição hoje esgotada. Kavalier &Clay é, entre outras coisas, uma declaração de amor muito sincera aos quadrinhos e, principalmente, à figura do super-herói em sua forma mais pura, surgida em uma época batizada como Era de Ouro. Pela sua data de publicação e seu tamanho, quase 700 páginas, é óbvio que começou a tomar forma muito antes dos uniformes coloridos se popularizarem além do papel impresso, provando o interesse genuíno de Chabon, que – inclusive – também é o autor do argumento que deu origem ao segundo longa metragem do Homem-Aranha, dirigido por Sam Raimi.

Conforme já observado, a temática por si só não é o motivo pelo qual alguém deveria lê-lo ou não, mas pela citação abaixo, da primeira página da história, já é perceptível que existe algo maior nesta jornada.

“Para mim, Clark Kent numa cabine de telefone e Houdini num caixote eram uma só coisa…. Você não era, ao sair, a mesma pessoa que tinha entrado. O primeiro número de mágica de Houdini, vocês sabem, quando ele estava começando. Chamava-se ‘Metamorfose’. Nunca foi uma simples questão de escapar. Era também uma questão de transformação”

Iniciando como uma narrativa de aventura com pano de fundo dramático, o livro nos apresenta um jovem judeu, o aprendiz de ilusionista e estudante de arte Joseph Kavalier, cuja família começa a preocupar-se com o endurecimento da política antissemita na Tchecoslováquia, naquele momento ocupada pelos nazistas. Sem possibilidade dos pais abandonarem o país junto com seus dois filhos, a solução é enviar Joseph, o mais velho, para morar com sua tia nos EUA, com a esperança de fugirem depois ou, pelo menos, salvar também o caçula Thomas. Apesar do processo custoso e burocrático, Joseph é impedido na última hora e, sentindo-se incapaz de decepcionar sua família voltando, recorre secretamente ao seu mentor na arte dos números de escapismo, para bolarem um plano que o leve além da fronteira urgentemente. A solução mirabolante envolverá o transporte clandestino de um caixão, contendo um símbolo importante da mitologia judaica!

As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay

Houdini é uma das inspirações, dentro e fora do livro!

Apenas este fragmento da história já parece ser a sinopse de um romance inteiro, é verdade, e essa é uma das qualidades de Kavalier & Clay. A sensação é que a história realmente caminha – e muito – adiante, com Joseph chegando a Nova York e conhecendo seu primo, Sam Klayman, que vê utilidade na destreza com lápis e pincéis que o recém chegado demonstra. Com o nome artístico de Sam Clay, ele se torna o roteirista enquanto Joe desenha, criando um novo super-herói para aproveitar a onda emergente do mercado editorial. A criação dos dois, O Escapista, é um rápido sucesso, seguido de vários outros heróis, mas ainda que prosperem relativamente, a exploração por parte dos editores torna essa dupla um análogo ficcional ao que Siegel e Shuster, criadores do Superman, sofreram naquela época. As citações a eles e outros artistas da vida real, vivendo naquele contexto, trazem mais verossimilhança à narrativa, assim como os locais verdadeiros – descritos por Chabon com maestria na fluidez – por onde Sammy e Joe circulam.

Comentar sobre outros personagens e caminhos desta trama, cujo fluxo de acontecimentos não cessa e desloca-se depois até para fora dos EUA, estragaria o prazer de quem ainda vai lê-lo. Focando na complexidade dos dois primos e sua criação de sucesso, encontramos as relações comuns da realidade entre criadores e criaturas. O Escapista, uma ficção dentro de outra, traz em sua essência não apenas o gosto de Joe Kavalier por performances no estilo de Houdini, seu ídolo, mas também a ansiedade gerada pela culpa, afinal ele está em segurança nos EUA, longe da guerra, enquanto sua família é espoliada e humilhada em Praga. Existe ainda a urgência em ganhar dinheiro e garantir, de alguma forma, a segurança deles, um fardo que é algo aliviado no processo de produção das páginas de seus gibis, onde cria cenas nas quais o herói surra nazistas a todo momento.

As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay

Jerry Siegel e Joe Shuster, os criadores do Superman!

Já Sammy Clay, embora em uma situação menos dramática que o primo, tem seus próprios tormentos e sua vontade de escapar de uma vida infeliz. Ressentido por um pai que o abandonou, sua autoestima foi prejudicada pelas consequências da pólio contraída na infância. O sonho de Sam é o sucesso como escritor, mas sua insegurança o impede até mesmo de considerar os quadrinhos como uma forma de arte válida, e, além disso, existe o desconforto decorrente de uma condição que era bastante condenada pela sociedade daquela época. É a vontade comum de transcender uma realidade melancólica, nem que seja momentaneamente e usando papel e tinta, que move a criatividade dos dois.

Existe um drama considerável, mas se engana quem achar que a coisa descamba para o excessivamente melodramático. Outra qualidade desta história é que, como na vida real, também existem momentos engraçados, leves e alguns pequenos triunfos que nos fazem esquecer, ainda que brevemente, dos problemas mais sérios. São aquelas partes em que o leitor sorri sem perceber, conferindo uma naturalidade mais do que benvinda a um romance deste porte.

Quem conhece alguns grandes nomes desta indústria já deve ter percebido. A prosa de Chabon está homenageando, também, o lendário Jim Steranko, um artista cujas peripécias longe da prancheta certamente dariam um filme e, além de outras coisas, também realizava números de escapismo. Mais uma camada em uma estrutura narrativa que poderia ser perfeita, só escorregando em forçar uma ou outra coincidência, além do que parece ser uma tentativa – em momentos muito rápidos – de chocar algum tipo de público com descrições fora do contexto. Nem chamaria tanta atenção se o restante não fosse tão bem acabado, mas acaba dando vontade de perguntar ao autor o motivo dessas escolhas tão destoantes.

As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay

Jim Steranko, desenhista e escapista, entre outras coisas!

Chegando ao final, As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay nos recompensa pelo tempo que dispensamos a esses protagonistas e seus coadjuvantes. Todos eles tão falíveis, algo que nos faz torcer mais por eles. Ainda que a ousadia intrépida de Joseph empreste tanto apelo para o personagem, com suas motivações tão justas para qualquer um de nós, é Sam o mais simpático, e, justamente, quem fecha o círculo de um raciocínio muito tocante sobre uma relação específica entre heróis de quadrinhos, público e artistas. Mesmo com a satisfação de ter lido um ótimo livro, não é fácil despedir-se desta dupla, porém sua grande criação da Era de Ouro, o Mestre do Subterfúgio, Inimigo da tirania e Campeão da liberdade realizou outro grande feito e escapou para outra mídia…

Mas os quadrinhos com As Incríveis Aventuras do Escapista são assunto para outra resenha!

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