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A Ilha do Tesouro – O livro que definiu o gênero de piratas!

História definitiva de piratas escrita por Stevenson é metáfora para o amadurecimento

Piratas do Caribe é, sem dúvida, um dos maiores sucessos comerciais da última década. Resgatando o espírito das velhas histórias dos lendários bucaneiros da Idade Moderna, a franquia trouxe um refresco ao clássico gênero – que andava em baixa, mas ganhou um fôlego. Com o lançamento de Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar (confira a crítica!), deve ganhar mais um tempo da memória da galera.

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Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar estreia essa semana!

Mas afinal, “resgatar” de onde? Bem, histórias sobre pirataria são tão velhas quanto… bom, a própria pirataria. Entretanto, dificilmente esse subgênero de aventura teria se tornado o que é hoje – e dando origem a Piratas do Caribe – se não fosse pelos méritos daquela que talvez seja a obra seminal sobre o tema: A Ilha do Tesouro, publicado em 1883.

Embora Robert Louis Stevenson tenha produzido um vasto número e variedade de escritos durante sua vida relativamente curta, e tenha sido considerado um autor adulto em sua época, ele agora é majoritariamente conhecido como o esquizofrênico escritor de um clássico do horror, O Médico e o Monstro (analisado em um Formiga Na Tela); e dois livros infanto juvenis: Raptado A Ilha do Tesouro.

Tal visão é indubitavelmente injusta, e diminui as muitas valiosas conquistas e habilidades literárias do autor, mas o fato de que esses três trabalhos perduraram não apenas como citações na história da literatura, mas também como livros instigantes e acessíveis ainda hoje, é um tributo à genialidade de Stevenson.

A Ilha do Tesouro permanece como, talvez, a segunda história mais celebrada dele – superada somente pelo supracitado O Médico e o Monstro. Ainda que críticos especializados debatam sua seriedade, poucos questionam a importância de seu status como uma história desse subgênero de aventura.

De acordo com o próprio autor, o livro nasceu a partir da sua fascinação com um mapa em aquarela que ele mesmo desenhou de uma ilha imaginária. Quando Jim Hawkins começa estabelecendo que ele contará a história em retrospecto, a pedidos de “Squire Trelawney, Doctor Livesey, and the rest of these gentlemen,” os leitores são assegurados que todos os personagens principais sobreviveram à aventura, assim dando aos leitores a segurança necessária em uma aventura romântica dirigida primariamente a um público mais jovem.

Embora muitas excitantes cenas venham a mostrar os heróis em situações de grande perigo em um grande número de vezes, os leitores que eles irão superar todos os obstáculos. Assim, o suspense se foca em como eles escaparão desses obstáculos, e não especificamente na sua sobrevivência.

Ao mesmo tempo, ao negar detalhes sobre a época específica da aventura, ou a localização exata onde se passa, Stevenson permite aos leitores imaginar livremente, permitindo que a história seja aproveitada sem as limitações de quandos e ondes.

Ao introduzir o misterioso e ameaçador Bill Bones na serena atmosfera da taverna Almirante Benbow, Stevenson permite a imersão dos leitores direto na história. O estranho segredo da história pregressa e natureza de Bones cria o gatilho que envolve o leitor na história, que então é intensificada pelo seu aparente medo e subsequente encontro com Black Dog e Blind Pew.

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A Ilha do Tesouro!

No geral, a sequência que começa com Bill e termina com a morte de Pew serve como uma abertura para a aventura, estabelecendo a maior parte dos elementos importantes da história – especialmente o mapa do Capitão Flint, que levará os heróis à Ilha do Tesouro, e avisa sobre o “marinheiro de uma perna só”, antecipando a chegada do vilão da história, o temível Long John Silver.

Um clássico de aventura – literalmente

Seguindo o clássico padrão de histórias de aventura – que Stevenson ajudou a consolidar com esse livro – um indivíduo comum, Jim Hawkins, vive uma vida normal e rotineira. Até, claro, ser arremessado em uma situação extraordinária e extremamente perigosa, que logo sai do controle do personagem e de seus companheiros.

Apesar de o herói ser involuntariamente exposto ao perigo, ele mesmo assim consegue extirpar a si mesmo dessa situação e normaliza-la através de seus próprios esforços. A história dessa aventura é, portanto, de acordo com inúmeros críticos, um romance sobre o amadurecimento – tenha o herói 15 anos ou 75.

Em torno do início do livro, a morte do pai de Jim o libera para buscar seu próprio destino, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de encontra-lo pelo bem de sua mãe agora viúva.

Sem seu próprio pai, Jim adota duas possíveis figuras paterna: o Dr. Livesey, que representa a estabilidade, a maturidade e a responsabilidade moral; e John Silver, que representa a imaginação, a ousadia e a energia. Entre esses dois, e, mais importante, através de suas próprias ações, Jim encontra sua própria maturidade – junto com o tesouro, claro.

A educação de Jim começa com o ato de procurer os pertences do falecidade Bill Bones, a despeito da proximidade do bando de piratas comandados por Pew. Para completar essa tarefa, entretanto, ele precisa do apoio de sua mãe.

Assim que o Hispaniola parte, no entanto, ele passa a estar por conta própria. Mais uma metáfora que sustenta a tese do amadurecimento. O próximo passo em seu crescimento seria quando, engatinhando em um barril, ele ouve Silver revelar seu plano aos seus co-conspiradores.

Jim permanece calmo, tranquilamente informa seus amigos e, com eles, desenha as táticas de sobrevivência. Suas positivas e independentes ações iniciais são postas em movimento logo que eles chegam à ilha e ele sai sozinho; ele não tem nenhum plano específico, mas ele está certo de que ele consegue se virar de acordo com a necessidade. Ele vaga pela mata, onde conhece Ben Gunn, se reúne com seu grupo na paliçada, e enfrenta seu primeiro combate.

Quando Jim engata sua segunda viagem, ele já tem um curso de ação definido em mente; ele planeja abordar o Hispaniola e cortar as amarras, para que ele fique à deriva na maré, privando os piratas de um refúgio e de uma rota de fuga. Seu teste final em ação chega quando ele encontra o maligno imediato, Israel Hands.

Quando Hands tenta manipula-lo, Jim consegue ver através da perfídia e, agindo com grande destreza e coragem, ele consegue engambelar o experiente pirata. Finalmente, enfrentado por um enfurecido adversário, Jim permanece calmo e, com uma faca cravada em seu ombro, ele ainda consegue dar um tiro no vilão.

Parece uma aventura boba. Só parece.

A metáfora do amadurecimento desenvolvida por Stevenson atinge seu clímax no último teste de Jim – que não é físico, e sim, moral. Ao retornar para a paliçada, que ele ainda acredita ser controlada pelos seus amigos, Jim é capturado pelos piratas.

Dada a oportunidade de conversar em particular com o Dr. Livesey, Jim se recusa a escapar. Jim coloca sua palavra acima da sua própria vida, assim, sinalizando a transição não apenas de menino para homem, mas – mais importante para o autor – de menino para cavalheiro.

Apesar de o desenvolvimento de Jim ser importante para o romance, o elemento mais vívido e memorável do livro permanece sendo o personagem de Long John Silver – cuja lenda se tornou exponencialmente maior do que era em sua época, tornando-se um paradigma da ideia de pirata graças a Ilha do Tesouro. Todos os críticos apontam sobre a sua personalidade dúbia, ao mesmo tempo bom e mau, cruel e generoso, desprezível e admirável. Hoje em dia, esquizofrênico bipolar. Na época, pirata.

Alguns tentaram fundir esses elementos em um único “tipo” de personagem, um “herói-vilão”, em que o bem e o mal podem ser reduzidos a uma origem em comum. Esse tipo de esforço é um produto de má interpretação. Silver é tanto bom quanto mau, e seu papel na história exige os dois tipos de ação.

Mais do que tentar “explicar” Silver psicologicamente – não “nolanizem” o personagem, por favor – os leitores podem achar mais frutífero analisar as maneiras como Stevenson seus sentimentos em relação ao personagem no decorrer da história.

Em quaisquer histórias de piratas – mesmo a franquia Piratas do Caribe – o autor enfrenta um dilema narrativo e moral. Por um lado, piratas – pelos motivos óbvios – dificilmente podem ser apresentados como heróis ou exemplos morais; eles precisam ser criminosos ardilosos. Por outro lado, piratas são atraentes de muitas formas, o que rende personagens interessantes.

Torne-os atraentes demais, e sua história se torna moralmente distorcida; torne-os nulos, e sua história se torna chata. A solução encontrada por Stevenson em Ilha do Tesouro – fonte de onde Piratas do Caribe bebe – é mitigar a maldade dos piratas ao introduzir um elemento de ambiguidade moral na caracterização e comportamento de alguns deles, sem negar as consequências malignas de suas ações; assim, separando os vilões “bons-maus” dos “maus-maus”.

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Robert Louis Stevenson!

Stevenson usa essa técnica em Ilha do Tesouro, popularizando-a para a história. Silver é colocado a parte de seus camaradas vilões, pondo-se em conflito com as figuras realmente más, como Israel Hands e George Merry, com personagens piratas menos desenvolvidos permanecendo como pano de fundo.

Stevenson desenvolve o lado maligno de Silver com duas estratégias simples: ele apresenta o aspecto cruel e implacável de Silver bem no início, permitindo que o seu lado “bom” se revele aos poucos durante a história, estabelecendo um contraste que parece coerente.

Ele mantém o Silver “mau” à distância, e dá aos leitores uma perspectiva de ordem particular sobre o que vem a ser visto como um relativamente bom Long John Silver. Assim, embora os leitores não se esqueçam da brutalidade dos atos e palavras prévias do personagem – não nos deixando esquecer que trata de um pirata, afinal de contas – essas características vão ganhando distância e permanecendo no plano de fundo da história, conforme ela avança.

É curioso como os leitores são preparados para o maligno Long John Silver através de avisos no início – como aquele sobre o “homem de uma perna só”. Ele é visto manipulando Squire Trelawney, e até mesmo Jim nos seus primeiros encontros. Assim, os leitores admiram suas habilidades, mas temem toda a maldade que obviamente está por trás delas.

A traição flagrante de Silver é melhor vista na cena supracitada do barril, especialmente seu insensível clamor para matar todos os não-conspiradores quando a oportunidade surgir. Long John atinge o auge de sua vilania quando mata o marinheiro que se recusa a se unir ao motim, esfaqueando-o até a morte.

Mesmo essas duas evidências graves que apontam para a maldade de Silver, no entanto, são vistas a distância, dentro de um barril ou por entre as árvores. Quando Long John é colocado por Stevenson no centro da narrativa, estabelecendo uma relação íntima com Jim, o personagem é imediatamente aliviado. Quando Silver e Jim se tornam parceiros relutantes para sobreviver, a imagem e o status do pirata já mudaram consideravelmente – uma prova da habilidade de Stevenson como escritor.

Silver é um clássico vilão protagonista, arquétipo muito bem explorado pelo autor. A perspectiva inicial que temos dele é não só de que é mau, mas também invencível. Conforme ele se torna menos unidimensionalmente maligno, ele se torna progressivamente mais vulnerável, a despeito de seu status moral. Conforme a maré começar a mudar para os piratas (pegou a piada?), Silver começa a perder o controle não apenas da expedição caçadora do tesouro, mas dos seus próprios homens.

Essa perda de poder é sinalizada por uma crescente ênfase do autor em sua deficiência física. O John Silver que precisa se arrastar de joelhos para fora da paliçada, após o fracasso de sua “embaixada”, é um eco distante do John Silver que pode derrubar um inimigo com um único golpe, ou esfaqueá-lo até a morte.

O personagem, dentro do contexto do amadurecimento da história, representa os desafios e ambiguidades de escolha e que a vida nos impõe conforme crescemos. Sua lábia e habilidade ao manipular os bons homens do Hispaniola são componentes da primeira parte do livro – a fase da vida em que nossas escolhas são binárias e, muitas vezes, inconsequentes.

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O temível (ma non troppo) Long John Silver!

Quando Silver é ameaçado de motim pelos seus próprios homens, e ele precisa usar esses mesmos talentos diante de Jim para salvar a ambos, elas se tornam características positivas – a ideia de que o que nos define é qualidade moral das nossas ações, e não as ações em si. Mesmo que ele obviamente seja motivado por um instinto de auto-preservação, Silver de fato protege o rapaz, e transmite um sentimento de honestidade; um símbolo interessante, por ser direcionado justamente a Jim.

Moralmente ambíguo, definitivamente divertido

O moralmente ambíguo encerramento do livro é, assim, o único narrativamente coerente. John Silver não foi mau o bastante para ser enforcado, e é difícil imaginar sua vitalidade sufocada na prisão; ainda assim, mesmo que ele tenha se desprendido dos outros vilões, ele dificilmente se qualifica como herói. Ele não é nem punido, nem grandemente recompensado por suas maquinações e heroísmos; ao invés disso, ele é deixado para buscar seu próprio destino em outra aventura.

Dessa forma, A Ilha do Tesouro, com seus instigantes e dúbios personagens, e uma história que fala diretamente ao seu público – os amantes da pura aventura, e aqueles na idade da descoberta – se tornou um clássico absoluto. Embora narrativamente simples, sua importância história é inegável. Se não fosse, o amigo leitor não estaria indo ver o quinto Piratas do Caribe no cinema.

Sendo assim, ice as velas, afie sua espada, proteja-se do escorbuto, e desbrave essa aventura clássica, que lançou as bases que inspiraram tantas outras aventuras de piratas, assim como de outros gêneros.

Só me faça um favor, e tome um banho ao voltar, porque, né, meses no mar e tals…

Aproveite que você está aí, e dê uma olhada no nosso ranking da franquia Piratas do Caribe, e nossa lista com os melhores filmes de piratas!

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