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A Mão Esquerda da Escuridão – (Não) Identidade de gênero!

A Mão Esquerda da Escuridão e os questionamentos sobre gênero

Ninguém discutiria o quanto os fatores biológicos nos influenciam enquanto raça humana ou indivíduo. Mesmo assim, ficando apenas nos instintos mais básicos, a auto-preservação é um reflexo tão automático que quase não pensamos sobre isso como um aspecto evolucionário. E o peso do sexo, da forma mais abrangente possível, na formação de uma espécie auto-consciente? Essa pergunta encontra algumas hipóteses em A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness).

(Confira também o Formiga na Tela dedicado ao livro)

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Resenha de A Mão Esquerda da Escuridão

A Mão Esquerda da Escuridão em sua edição mais recente, pela Aleph.

Escrito pela norte-americana Ursula K. Le Guin, nascida em 1929, e publicado originalmente em 1969, o livro é o quarto do que se convencionou chamar de ciclo Hainish. São obras sutilmente interligadas e ambientadas no mesmo universo, mas completamente independentes entre si. Destacando-se em um meio predominantemente masculino*, já é um atrativo a mais que a exploração de uma sociedade andrógina tenha partido de uma mulher.

(Outra exceção é Octavia E. Butler. Confira também a resenha de Kindred)

Lançando seu leitor para dentro de uma situação já em andamento, é inevitável o estranhamento inicial. Genly Ai é um alienígena em Gethen, enviado como representante do Ekumen, uma espécie de cooperativa de planetas criada pelos pacíficos Hain, agindo em benefício mútuo. O objetivo é apresentar-se a uma cultura que sequer tem máquinas voadoras e convidá-los a fazer parte do grupo. Embora ele já esteja no planeta há algum tempo quando a história começa, o choque cultural e as dificuldades de comunicação ainda não se dissiparam. Pelo contrário.

O problema é que Genly Ai é homem. Um humano, como nós, que viveu em um ambiente com gêneros separados e sem períodos de atividade sexual  –  e identidade – definidos biologicamente. Aos poucos, vamos entendendo como a androginia dos gethenianos dificulta a compreensão entre eles e o emissário. Como entender essa misteriosa espécie, cujo orgulho e arrogância têm outras raízes psicanalíticas e emocionais? Como se colocar no lugar de alguém que é visto por ele, e por nós, como homem – por puro reflexo – em um momento, mas é capaz de engravidar?

É óbvio que o enviado é o próprio leitor nesta jornada. As dificuldades em se fazer entender, procurando vencer o ceticismo de duas potências provincianas que o veem como aberração, alargam os horizontes desta discussão, além do frio extremo do planeta.  Dificultando ainda mais essa missão diplomática, as intrigas políticas entre os dois países criam um jogo de intenções muito nebulosas. A relação entre Ai e Estraven, peça chave na política da monarquia Karhide, é o que vai conferir a substância essencial nos desdobramentos desta narrativa.

As reflexões sobre como a questão sexual influenciou todo um sistema de valores nos brindam com aquilo que só a boa ficção científica é capaz de trazer. Conforme já deve ter ficado óbvio e a própria autora escreve no prefácio, A Mão Esquerda da Escuridão não é um romance de antecipação ou especulação. Tampouco o exercício de imaginação criado por ela alude diretamente a algum período histórico específico. O conceito é muito mais abrangente do que uma metáfora direta, fazendo com que seja impossível não pensar sobre o assunto após seu final.

Resenha de A Mão Esquerda da Escuridão

Ursula K. Le Guin em foto recente.

Aspecto humano em um contexto bem maior

Com um conteúdo tão provocativo –principalmente nos dias de hoje – e psicologicamente denso, ainda foi possível criar momentos mais intimamente humanos, que nos aproximam e nos fazem torcer pelos personagens. Essa é uma característica distintiva na própria literatura de ficção científica, observação feita também no trabalho de Brian Aldiss (Os Negros Anos-Luz). Entre tantas qualidades ao longo de quase trezentas páginas, são poucas as ressalvas.

É sempre um risco iniciar uma narrativa com uma situação em curso, entregando as peças daquele universo e contexto para o leitor aos poucos. Ainda mais quando isso envolve a utilização de uma terminologia toda particular e narração em primeira pessoa. Exige um pouco de paciência, é verdade, bem recompensada depois, mas esse não é o verdadeiro problema.

Algumas descrições, sobretudo geográficas, acabam comprometendo algo da fluidez da leitura. É até compreensível pelo formato narrativo, mas é um detalhe importante quando se avalia a experiência como um todo. Pode ser a diferença quando se decide qual livro você vai reler ou não. Felizmente, não tão relevante quando comparado ao caráter conceitual, que, após décadas, continua irretocável.

A Mão Esquerda da Escuridão é aquele tipo de obra singular, não apenas no sentido de qualidade ou de provocar seu público. Provoca a vontade familiar de recomendar ao maior número possível de pessoas, juntando mais gente para uma roda de discussão. Bem provável que alguns se exaltem demais nesta situação, mas o importante é que ninguém sai incólume.

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