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Manchester À Beira-Mar – Um filme duro e profundamente humano!

A perda do ente querido em Manchester À Beira-Mar

Felizmente, eu nunca passei pela experiência do luto. No entanto, recentemente, um amigo muito próximo perdeu o pai abruptamente e pude acompanhar nos dias subsequentes a dor profunda sentida por ele e os familiares. Também presenciei com muito pesar como, em meio a todo o sofrimento, eles tiveram de dedicar boa parte do tempo a resolver problemas legais e burocráticos. Além disso, vi como o falecimento do pai mudava a dinâmica familiar, trazendo novas responsabilidades para cada um dos seus membros.

Manchester a beira mar, de Kenneth Lonergan

Manchester à Beira-Mar

Assistindo a Manchester À Beira-Mar (Manchester By The Sea), o terceiro longa-metragem do dramaturgo e diretor Kenneth Lonergan, não pude deixar de ser tomado por sensações muito similares às que tive quando acompanhei o meu amigo no seu duro período de luto. Pois, ao contar a história de Lee Chandler (Casey Affleck, de Tudo Por Justiça*), um zelador que, depois de voltar à cidade natal em razão da morte do irmão mais velho, precisa cuidar do sobrinho menor de idade e planejar o funeral e enterro do falecido, o cineasta não só construiu uma narrativa poderosa sobre uma situação que todos nós já enfrentamos ou enfrentaremos cedo ou tarde, como criou personagens que, por serem tão reais e verdadeiros, dão a impressão de que estamos acompanhando pessoas muito próximas a nós.

*(Filme que também rendeu um episódio do Formiga na Tela)

Escrito e dirigido por Lonergan, o filme foi inteiramente construído de maneira com que a força do texto e das atuações ganhassem vida e guiassem o espectador ao longo da projeção. Trazendo para a obra toda a experiência acumulada durante os anos em que trabalhou como dramaturgo, Lonergan narra uma história profundamente humana e extrai de todo o elenco performances emocionalmente poderosas. Ademais, apresenta ao público personagens que em momento algum parecem ser arquétipos ou criações artísticas. Pelo contrário, são seres que agem como pessoas reais e imperfeitas, ora acertando, ora errando, mas sempre tentando fazer o melhor na busca pela redenção de erros cometidos no passado.

Manchester a beira mar, de Kenneth Lonergan

Uma boa parte dessa sensação de realidade é alcançada através do trabalho meticuloso de Lonergan na escrita do roteiro. Ao invés de buscar soluções fáceis e enxergar nos conflitos verbais dos personagens possíveis plot twists (viradas radicais no roteiro) para a história, o roteirista, ciente de que não há saídas simples para alguns problemas e que o contraditório presente nas ações das pessoas é o que as tornam seres interiormente complexos, opta por uma abordagem mais humana. Portanto, em Manchester À Beira-Mar, é muito comum ver discussões acaloradas seguidas de gestos gentis, erros aparentemente indesculpáveis sendo perdoados anos depois, pessoas aceitando o próximo apesar de seus defeitos e tantas outras situações tão presentes no nosso dia a dia e na nossa vida.

Essa mesma abordagem contraditória e, portanto, humana, também será usada por Lonergan na construção dos dois personagens principais. Ao passo que Lee Chandler, o melancólico protagonista, mesmo morto por dentro em razão de um trauma no passado, consegue seguir em frente e se dedicar ao planejamento do funeral e enterro do irmão, Patrick (Lucas Hedges), seu  vívido sobrinho, embora triste pelo falecimento do pai, dá prosseguimento ao próprio cotidiano, que envolve coisas típicas da adolescência. Além de encontrar reflexo na vida de todos nós (quem nunca acordou no dia seguinte e cumpriu com as obrigações mesmo estando triste ou melancólico?), essa abordagem de Lonergan permite que surja um humor na narrativa a partir das diferenças de personalidade dos dois e da reação de ambos aos acontecimentos, o que, por sua vez, também não deixa de ser algo muito presente em determinadas situações do nosso cotidiano (afinal, quem nunca fez uma brincadeira em um momento de dor?)

Eficiente também na parte técnica

Já na direção, para contribuir com essa sensação de realidade transmitida através do roteiro, Lonergan e Jody Lee Lips, o diretor de fotografia, investem numa câmera mais fixa e comedida, que acompanha os personagens no desenrolar da história. Mantendo a câmera longe e usando planos gerais nos flashbacks para simbolizar o distanciamento temporal e emocional do protagonista com o próprio passado (não é à toa que na cena que o mostra ao lado da esposa e filhos, eles refletem a felicidade compartilhada pelos personagens através de movimentos de câmera e no emprego de primeiros planos e planos médios) e focalizando e fotografando a cidade como se fosse mais um personagem dentro do filme (o clima das paisagens contribui muito para a tristeza de alguns personagens), Lonergan e Lips poderiam facilmente se acomodar e contar a história simplesmente, porém, os dois surpreendem e apresentam conceitos interessantes de composição cinematográfica.

Manchester a beira mar, de Kenneth Lonergan

Quem também merece ser destacada é Jennifer Lame, a montadora. Com a ingrata tarefa de construir uma narrativa que alterna entre o presente e o passado (na maioria dos filmes, os flashbacks são usados como recursos expositivos que comprometem o ritmo da história e entregam a pobreza narrativa e visual de seus realizadores), Lame (que sobrenome mais injusto!) faz transições elegantes e que andam lado a lado com as movimentações da trama no momento presente (por exemplo: Lee começa a considerar a possibilidade de aceitar a guarda do sobrinho quando lembra dos momentos em que o irmão fazia de tudo para ajudá-lo a superar o seu trauma). Outro instante em que as escolhas da montadora se mostram brilhantes é o tour de force que revela, através de uma montagem alternada, que Lee é o tutor de Patrick e qual foi o acontecimento definitivo na vida do protagonista.

Com atuações soberbas do elenco (há várias cenas em que o brilhantismo dos atores cria momentos dramaticamente intensos – o diálogo final entre Lee e a ex-esposa, interpretada por Michelle Williams, é de partir o coração) e uma performance magistral de Casey Affleck (a forma como o ator consegue transmitir os impulsos de autodestruição do personagem mesmo sob uma voz fina, feições e gestos sem vida merece ser estudada com atenção nas escolas de teatro), Manchester À Beira-Mar é um filme duro, por vezes doloroso (o tema do luto é sempre difícil de ser abordado) e que não faz concessões ao espectador. Mas, por ser assim, também é humano, profundamente humano.

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